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quinta-feira, 14 de maio de 2015

Conversas ao borralho - O sopro.




(Enquanto lê, convido a abrir nova página e escutar Django Reinhardt como musica de fundo para o texto)
https://www.youtube.com/watch?v=SR7U9T5Mdj4

De vez em quando o tempo esfria. Com tempo frio a alma e o corpo se contraem e obrigam a pensar. Tempo quente, pelo contrário, leva à expansão da alma, o sangue esquenta e a vontade é a de nos divertirmos um pouco até sem muita preocupação. O borralho da lareira, que é quando as labaredas já se foram e ficam apenas as brasas irradiando um ultimo calor, deixa-nos a um passo do inferno e a outro do paraíso. O vento quando sopra traz algumas coisas de volta do passado. O farfalhar de folhas podem ser de vestidos e meias de seda de mulher que nos vêm lembrar os velhos afagos perfumados e os beijos úmidos daqueles quando os olhos se fecham, em meio a roçar de pernas de mulher uma na outra. Pode até ouvir-se o som dos elásticos que seguravam as meias de seda ao serem soltos. Hoje as pernas vêm já preparadas assim como os hambúrgueres do fast-food. A maioria delas nem possuem mais aqueles pelinhos suaves e louros de água oxigenada. As pernas chegam a ser escorregadias de tão lisas e cremosas. As estátuas de cera do museu de madame Tussauds lá em Paris são assim mesmo. Já passei a mão em duas delas. Uma era de Marilyn Monroe. Não têm o tato de “naturais”.


Quando o sopro de vento passou pela lareira, vi a loura se aproximar, com seu sorriso encantador, assim como marca registrada, moldado ao longo de anos a fio, pelo menos uns 25, e sem ele ela era uma pessoa um pouco diferente, como se fosse outra. Usava diu como se fosse um cinto anticastidade, muito antes da pílula ser inventada, mas tão seguro o tal do diu, quanto o cinto de castidade, ou até mais. Ironicamente tinha Castro no nome e uns olhos verdes que eram fatais. Foi com ela que percebi pela primeira vez como nossos corpos são um amontoado de carne segura por ossos, tendões e nervos, com uma pele que nos impede de ver o que está dentro. Somos montes de carne com miolos, sobreviventes da natureza da vida, passando um tempo neste planeta como se estivéssemos de férias nos tempos livres, porque nos tempos ocupados não conseguimos pensar mais longe do que uma centena de metros. Dizemos que estamos trabalhando. Pelo menos temos essa impressão, e muitas vezes nos perguntamos para quê todo esse trabalho, para que fim maior trabalhamos tanto. Passamos a vida a trabalhar. Os únicos momentos de diversão eram com ela, principalmente quando tirava as meias, depois o vestido, e já sem roupa passávamos algumas horas juntos na cama, dividindo prazeres. Há quem não possa ter prazeres por causa do trabalho e quem não possa trabalhar por causa dos prazeres. E lá se foi a loura de olhos verdes e meias de seda quando novo sopro fez as brasas do borralho darem um estalo e uma miríade de pequenas estrelas se misturaram na paisagem com as outras estrelas do céu. Claro que foi apenas uma ilusão, mas iría jurar que quer as estrelas do céu, quer as da lareira, eram exatamente do mesmo tamanho, todas quentes. Como a gente se ilude!


Aproveitei o ensejo e fui até o balcão da cozinha. Abri uma garrafa de vinho, cortei duas fatias de queijo e duas de pão. Servi-me de um copo de vinho, coloquei tudo num prato dentro de uma bandeja e levei até a mesinha perto do borralho. Foi então que reparei numa figura bem conhecida sentada numa cadeira, já à mesa. Era Peter, amigo do João Padeiro. João Padeiro morava na época em que nos conhecemos, na mesma rua. Era excessivamente católico, muito certinho, não saía jamais de uma linha de comportamento. Tinha nascido para isso, completamente previsível. O sobrenome Padeiro herdou entre nós por causa do ramo de comércio a que seu pai se dedicava. Já Peter era o oposto. Um extraordinário jogo de cintura e um espírito de sobrevivência que fizeram dele exatamente isso: Sempre na malandragem, equilibrou-se a vida toda num fio de navalha. Chegou a chefiar uma gang de ladrões juvenis para conseguir dinheiro nos tempos difíceis das guerras coloniais, em Lisboa. O João Padeiro morreu nessas guerras. Perguntei ao Peter como andava a vida dele. Disse-me que trabalhava agora para o governo em obras assistenciais e que namorava duas irmãs com o consentimento dos pais. Casara, mas separara-se da mulher que morava no mesmo prédio dele e que o via subir pelo menos duas vezes por semana com as duas irmãs. As roupas dele tinham um cheiro meio de perfume meio de maconha. Passava horas a fio na cama mesmo durante a semana em dias de trabalho. Empregos do estado permitem que se conheçam médicos do estado que atestam com atestados, fornecedores do estado que fornecem fornecimentos, advogados do estado que conhecem onde os rabos ficam presos. As duas irmãs nunca brigaram entre si. Tinham o resto da semana livre. Levantei-me para apanhar mais um copo. Quando voltei, Peter havia sumido. Nunca mais o vi. O borralho continuava quente. 


- Oi!... (Ouvi vindo da garagem. Era uma voz feminina, conhecida).
- Oi!... Senta-te! (Disse-lhe, enquanto me levantava e lhe preparava a cadeira de ferro fundido branco, para que se sentasse. Um dia pintaria as cadeiras e as mesas de preto). Ajeitei-lhe a cadeira. Sentou-se e então continuei:
- Há quantos anos não te vejo... Como chegaste?
- Pelo sopro do vento. Uma onda me deixou na praia. Sou a sereia da tua vida.
- Sim, sempre foste. O que nunca entendi foi por que não nos casamos, sendo tu tão linda, tão perfeita de corpo, tão prendada... O tipo de mulher que ninguém perderia.
- Mas eu sei! – Disse-me ela, com um sorriso. E antes que lhe perguntasse concluiu:
- Conhecemo-nos uns meses antes do tempo em que estaríamos preparados um para o outro. Tudo tem o seu tempo, e por vezes nosso tempo corre mais depressa para uns do que para outros. Naquela época tinhas a “tua vida”. Corrias de um lado para o outro, abraçavas todas as oportunidades. A vida era apenas aquele momento diferente todos os dias. Não paravas quieto. Do trabalho para a universidade, de lá para as aulas particulares... Para os namoros... Que mulher deixarias escapar se te olhasse mais interessada e te agradasse?
- Quer dizer que sabias disso... (Eu sempre desconfiara que ela sabia de minhas aventuras, mas nunca me encostara contra a parede obrigando-me a uma confissão).
- Sabia... Quer dizer... Desconfiava com aquela certeza. Homens e mulheres têm o tal do sexto sentido. Sempre se sabe. São pequenas “coisas” deslocadas de um perfil que não batem. É como um relógio com arritmia...
- Entendo... Mas agora já não dá mais para voltarmos atrás, não é? Tudo mudou muito. Não?
- Mudou!... Mudamos a cada dia. Quem está perto da gente não nota, e por isso há casamentos que duram uma vida. Quem se afasta por algum tempo nota a diferença. Ofereces-me um café?
- Claro!... E levantei-me da cadeira, indo até a cozinha. Coloquei o filtro na máquina de café, o pó, três medidas de café, água no reservatório e quando voltei para o borralho da lareira, as cadeiras estavam vazias. Minha sereia tinha-se ido, provavelmente para nunca mais voltar. As pessoas mudam muito e o peixe anda escasso. Fiquei com a preocupação de algum pescador lhe lançar a rede de arrastão e lhe romper as meias de mesmo nome. Ela ficava sensacional com aquelas meias. Já não se usam. E foi com melancolia que notei que quase nada se usa mais. Ou quando se usa não têm o mesmo sabor. Aquele sabor inconfundível que só o sopro do tempo faz reavivar as brasas do borralho. Era uma brasa, Mora!


®Rui Rodrigues. 

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