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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O homem, o copo e a percepção.




O homem, o copo e a percepção.

Tinha acabado de lavar alguma louça. Afastou-se da banca da cozinha e foi até o computador que ainda o aguardava numa página aberta esperando comunicação. Era impressionante como um computador é um servo útil, bem mandado, que a um toque nosso faz o que queremos, ou melhor, o que sabemos que podemos querer. Experts em computador podem fazer muito mais do que quem apenas o usa para meia dúzia de funções. Quando acabou a comunicação no computador voltou à cozinha. Ia preparar uma caneca de leite com açúcar e três colheres de sopa de aveia em flocos. Fazia-lhe bem à saúde e era saboroso. Principalmente o final, quando o leite estava no fim, e comia a aveia com uma pequena colher de sobremesa. Reparou então que no escorredor estava um copo de vidro de tal forma posicionado que qualquer distração poderia fazê-lo cair do escorredor e certamente quebrar-se. Retirou o copo com toda a atenção e o colocou em seu lugar de costume, devidamente protegido contra tombos. Então, voltou-se para o copo e disse:

- Não precisa agradecer, mas acabo de te salvar a vida!

E deu-se conta de que tinha falado com um simples copo. Estaria louco? Seria uma possibilidade se isso fosse um costume, mas não se lembrava de ter feito algo semelhante nos últimos cinqüenta anos.  Aventou então uma outra possibilidade. A de que por um momento tivesse colocado uma parte de sua alma no copo, o que significaria que estava falando consigo mesmo. Mas também significava que não era muito normal essa coisa de falar consigo mesmo. Pensou ainda em algo mais. A física quântica diz que partículas se podem comunicar instantaneamente mesmo à distância. Talvez por algum fato não conhecido da Física pudesse ter acontecido o mesmo com o copo e este tivesse pedido para ser salvo. Mas não. Isso não poderia ser. A probabilidade era tão pequena que era o mesmo que ser impossível. Ainda lhe ocorreu que um espírito tivesse “entrado” no copo, mas essa possibilidade era tão remota como aquela da física quântica que só se aplicava a partículas e não a corpos maiores. A hipótese de o copo ter aprendido a falar e ter ouvidos também, tinha sido a primeira a ser descartada. Finalmente entendeu. 

A morte não se aplica apenas a corpos vivos. Mesmo corpos mortos, quando cremados, por exemplo, geram cinzas. Depois que as cinzas desaparecem jogadas no mar ou aos ventos, desaparece por completo: Finalmente, o corpo morto morreu verdadeiramente. Mas ainda não, totalmente, porque fica na memória de amigos e inimigos que ainda não morreram. Por pouco tempo mais, é certo, mas de certa forma ainda continuam vivos. Finalmente, quando o ultimo ser vivo que conhecia o defunto se vai, não resta nada mais daquele corpo morto que tinha sido cremado e “voltara a morrer” quando as cinzas foram espalhadas. Só agora, sem ninguém que se lembre dele, pode ser considerado definitiva e irremediavelmente morto!

Lembrou-se então que achava a morte um desperdício. Um desperdício útil porque permite que o planeta não se encha de seres vivos em menos de meia dúzia de bilhões de anos. Mas o copo, não... Ele nem se reproduz nem pode causar tamanha catástrofe de inundar de copos este mísero planeta. E enquanto pudesse servir para tomar sua água, seu vinho, o copo estaria vivo porque servia. E concluiu que viver é “servir”. Tudo o que serve, vive.

E ficou feliz. O copo ainda estava vivo e seria o de sua estimação!

Rui Rodrigues

Construindo imagens do mundo.

 Construindo imagens do mundo.

Precisava de uma imagem para a qual pudesse olhar a qualquer instante e rebuscar explicações, detalhes, que me ajudassem a compreender o mundo em que vivo. Há quem viva sem esta necessidade, perguntando-se todos os dias “porquê?”, sem encontrar qualquer razoabilidade nos fatos, angustiando-se, sofrendo, ou simplesmente nada se perguntar, e encolhendo os ombros e dizer “a vida é assim mesmo”. E mesmo dos que se questionam e tentam construir imagens, como eu, há que não desprezar os pequenos detalhes. Sem eles não se explicam os grãos, os pedregulhos, as rochas nem os limos e árvores que compõem este mundo e lhes dão significado.

A imagem que cada um de nós tem deste mundo depende dos grãos coletados para compor a sua imagem. Por isso, e porque são tantos os grãos, os detalhes, as minúcias, não há, de certeza absoluta, dois seres que o vejam como realmente ele é, e muito menos dois seres que o vejam de forma igual. A probabilidade de duas imagens serem idênticas com tal infinidade de detalhes de todos os tipos é nula até a mais infinita casa decimal.

É isso que nos faz diferentes uns dos outros, e não apenas a carga genética e nossa interação com o mundo. Estes são apenas pequenos grandes detalhes de um universo ainda muito e muito maior. E esta constatação nos imprime o sentimento angustiante de que somos pequenos, muito pequenos, pouco mais do que um grão de fino pó, face à enormidade dos fatores que compõem nosso universo físico e moral, mas que nos faz gigantes, quase pequenos deuses, ao constatarmos que mesmo sendo tão pequenos, tão ínfimos, temos a capacidade de entender tanto do mundo que nos rodeia e dominar-lhe apreciável parte.

E temos assim a explicação para todos os campos divergentes do conhecimento humano. Sob o ponto de vista da percepção e avaliação humana do mundo ao nosso redor não há diferenças tão gritantes entre quem tem um DNA com qualquer deficiência ou quem o tem perfeito e não aproveita as suas qualidades. As descriminações a que assistimos devem-se exatamente à “imagem” que cada um de nós construiu para si mesmo, colhendo grãos, pontos, limos, árvores, e para a qual olha todos os dias tomando-a como referência para o seu comportamento.

Somos catadores de pichels, grãos, gotas, impressões, fatos, notícias. Coletamos tudo e nada é lixo. O que é lixo para uns não o é para outros e há riquezas imensas nos lixos que coletamos.  E então nos classificamos uns aos outros pelo lixo ou pelas riquezas que coletamos. Mas como nem todo o lixo é lixo e muitas riquezas o são, ou em outras palavras, como nem toda a riqueza é riqueza e muito lixo é, podemos ser induzidos a pensar, face ás imagens que construímos, que riqueza é tudo o que os outros não dividem e lixo é tudo o que esses mesmos jogam fora. Fora de sua mente ou fora do mundo material que detêm. É a característica classificação do equivoco e somente uma imagem mais completa que se possa construir permitirá identificar o que realmente é lixo e o que é riqueza. Mas nenhum de nós tem tempo suficiente de vida para construir uma imagem perfeita. As que temos são geralmente reaproveitadas de antigos formadores de imagens as quais copiamos e refazemos a cada dia, mudando-lhe os detalhes de lugar, retirando-os, colocando novos detalhes, diferentes, ou alterando-lhes a intensidade.

O projeto americano para mapear o cérebro humano contribuirá de forma determinante e efetiva para um melhor conhecimento da mente humana, a exemplo do que já aconteceu com o projeto “genoma”. Porém, e, como sempre, muitos novos pichels, pontos, curvas, cores, serão incluídos ou removidos, ou mudados de lugar. Uns para construir novas imagens, e outros para destruírem muitas das que já existem. Porém, neste aparente caos de imagens há uma determinada ordem que ainda não conhecemos, mas que determina a “direção” em que se move a humanidade. A humanidade se move na linha do “adotado”, isto é, o que a humanidade adota, seja riqueza ou lixo, perdura por momentos de tempo ínfimos para os padrões do universo, e depois são abandonados ou persistem através dos séculos. Um exemplo? A humanidade veste-se, não anda nua pelas ruas. Talvez algum dia a adoção de roupa se extinga, mas os pichels da imagem da moral ainda não o permitem, embora haja muitos de nós que a adotam. Eu por exemplo, em minha casa ando invariavelmente nu num clima tropical. Pessoas de regiões próximas a pólos vestir-se-ão sempre enquanto a Terra não for torrada pelo Sol. Muitos de nós construímos padrões morais que ridicularizam o nu, Outros crêem, como eu, que a moral não tem nada a haver com a vestimenta que nos disfarça.

Espero que este texto ajude a compor a imagem que constrói do mundo em que vive e que todos nós estamos construindo sem sabermos qual o rumo que a humanidade há de tomar.


Rui Rodrigues

PS – Experiência recente com ratos nos quais implantaram chips no cérebro, locados a milhares de quilômetros de distância – um nos EUA e outro no Brasil - demonstraram ser possível a intercomunicação cerebral. A notícia que li, não deixa antever qual o principio físico que foi utilizado, mas tudo leva a crer que tenha sido o da física quântica segundo o qual um “quanta” de luz tanto pode ser uma partícula como uma onda. Duas partículas colocadas em contato uma com a outra e  depois separadas, mesmo que pela distância extrema do Universo, sempre que uma mudar o spin, a outra muda também o seu de forma instantânea. Esta descoberta poderá levar no futuro a uma “rede” Net constituída e interligada por cérebros, além de computadores cujo “CPU” seja um cérebro ou vários interligados. 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Amor vida e sexo em 2.327




Amor vida e sexo em 2.327


Zirca!... (primeiro foi um guincho horrendo... Depois a voz amaciou ecoando por todo o imenso apartamento de 20 metros quadradinhos do casal)...Meu bem... Você conseguiu encontrar aquela porca sextavada de neoprene para o meu joelho?

Uma porca de neoprene voou pelos ares na direção do velho companheiro que a agarrou em pleno ar, demonstrando que tinha reflexos perfeitos. Porca e mão caíram a seus pés, ficando inertes.

Borco, meu bem... (Disse a senhora idosa). Você não está se cuidando. Sua mão caiu outra vez. Não está apertando corretamente os parafusos. Quer que eu selecione um canal de demonstração, específico de seu modelo? Eles são muito bons nisso. Têm programa para tudo. Nem podemos reclamar...

Borco proferiu alguns impropérios, apanhou uma chave Philips, recolheu a porca de neoprene e o parafuso e atarraxou devidamente os componentes da mão. Depois cuidou do joelho que voltou a funcionar. Levantou-se e saiu do apartamento. Estava inteiraço, na verdadeira acepção da palavra. Ele era o que existia de mais moderno, quase todo de aço inoxidável recoberto por uma pele artificial que pareceria desapercebida dois séculos atrás.  Zirca ficou meditando em sua cadeira, olhando uma tela em três dimensões onde passava um programa sobre a vida no século XXI. Como tudo mudara. Para economizar dinheiro em hospitais, para tornar a vida mais fácil, e em busca da eternidade, os seres humanos de posses agora eram robotizados por completo, exceto o cérebro que ainda era original. Isso acabara com a necessidade de hospitais, operações, transfusão de sangue, infecções hospitalares, transplante de órgãos e até havia reduzido o tamanho dos cemitérios porque cérebros não ocupam grande espaço para serem enterrados. E a arquitetura? Um apartamento com vinte metros quadrados era um palácio, porque cérebro não defeca, e por isso não existiam banheiros. Para lavar a pele artificial bastava um pano úmido. Como a manutenção do cérebro era feita através de pequenas ampolas de nutrientes, as cozinhas tinham sido eliminadas. E para quê escovar dentes se não se comia? Realmente a vida se simplificara muito e sobrava tempo. Tempo era o bem mais disputado. Doenças respiratórias, asma? Isso era coisa do passado, porque para oxigenar um cérebro não era preciso muita coisa: só um pequeno cérebro-pulmão artificial, uma pequena válvula dentro do corpo mecânico. O câncer acabara por motivos óbvios. Não havia outras doenças que não fossem mentais. 


O espaço no corpo agora sobrava e servia para carregar “coisas”. Borco usava para carregar o seu “laparoto”, um telefone, agenda, computador, que comandava quase toda a sua vida, e uma arma para desmonte de outros seres humanos com cérebro mais violento e que costumavam assaltar nas ruas para obter peças de reposição. Zirca usava o enorme espaço interior sobrante de seu corpo para guarda suas pinturas, pincéis, cílios postiços, mas nada de cremes. Cremes provocavam muita sujeira. Ambos carregavam uma camisa, um short ele, Ela uma curta saia, ambos um tênis extra, que serviam apenas para manter a aparência “humana”... Logo que Borco saiu do apartamento, ela saiu também. Sabia onde ele estaria. Foi encontrá-lo no bar do Play. Estava lá com a turma de amigos do condomínio, de frente para uma enorme TV assistindo a um jogo da Copa do Mundo. A algazarra de vozes mecânicas era estridente... Uma nuvem de fumaça pairava sobre a cabeça do grupo. Estavam “numa boa”.  As peles dos corpos tinham todas as cores. Umas eram amarelas, outras azuis, outras negras, outras brancas, verdes... As mulheres preferiam a cor rosa.

Belc, um húngaro bem humorado abriu espaço para Zirca que se sentou entre ele e Borco.
- Estamos ganhando de dois a zero, disse Belc laconicamente.
- Nós quem? (perguntou Zirca).
- Nós, Brasil... Sou Húngaro mas sou daqui... A Hungria já foi eliminada.
- Ah!... Acho que vocês estão fumando muito. Depois que perdemos os pulmões, e os narizes já não funcionam, agora ninguém reclama do fumo. E depois que liberaram a maconha, vocês vivem nas nuvens. (Ouviu-se uma gargalhada geral).
-Zirca, você está de mau humor hoje... (disse uma boazuda ruiva, certamente irlandesa)... Há quanto tempo vocês dois não transam? (os olhares voltaram-se para o casal denotando admiração)
- Ora, Vanidia... (Zirca sorria)... Fazemos isso todos os dias. Agora que ficou tão fácil fazer. É só apertar o botão do prazer, encostar minha mão na do Borco e já está... Podemos passar horas assim. O botãozinho injeta no cérebro aqueles hormônios fantásticos que nos dão muito mais prazer do que se fosse ao vivo e a cores... (E riu às gargalhadas)... Ás vezes digo-lhe que estou com dores de cabeça e ele fica danado da vida... É um sexo tranqüilo e não é como antigamente. Agora não há medo de pegar doença, fazemos sem camisinha, sem ter que tomar banho depois... Sexo limpo.

Gol do Brasil!!!!!!!!  Gol!!!!!!!!!

A turma levantou-se gritando esganiçada e alegremente, abraçando-se... Faltava um minuto para acabar o jogo e o Brasil vencia agora por 4 a 1. Era impossível perder. Foi então que alguém teve a triste idéia de comentar:

- Pelé foi o melhor jogador de todos os tempos!... O futebol já não é como antigamente. Agora é tudo controlado...
- Não!.. Pelé não... Fue Maradona!
- Messi...
- Neymar...

Todos se levantaram de repente, voaram porcas, parafusos, molas, chips, pedaços de pele artificial, cabelos de todas as cores, peitos postiços, alguns olhos e muitos dedos. Felizmente nenhum cérebro tinha sido ofendido seriamente. A equipe de manutenção do condomínio apareceu logo, com máquinas e caixotes. Ali mesmo começaram os reparos robóticos, e em questão de uma hora, estavam todos de pé, comentando alegremente a grande batalha de uma hora atrás, envoltos numa nuvem de fumaça. O garçom trouxe um bolo de carne cheio de velas que foram apagadas com o cérebro-pulmão artificial e foi dado aos cachorros de estimação. Para comemorar o aniversário do mais novo do grupo, um chinês com cento e quarenta anos. Cachorros, esses ainda comiam comida normal, mas já havia muitos com próteses mecânicas. Os humanóides não. Depois “tomaram” a saideira: Um fumacê de maconha, que para obter mais eficiência, os presentes facilitaram a admissão, abrindo uma pequena portinhola no cérebro que começou a pulsar alegremente.

Foi então que repararam que Borco e Zirca jaziam na grama, agarrados um ao outro, uma mão na outra, o botão do prazer ligado, tremelicando como se não houvesse amanhã, completamente alheios a tudo, perdidos no tempo e no espaço, entregues ao gozo...

A eternidade tem um preço. Pode sair barato ou caro. Mas que é possível, é... Mas até lá, aproveite bem! Porém, ainda não temos um mundo como o de amanhã, porque sem necessidade de “comer” a natureza rejuvenescerá e haverá vida selvagem por toda a terra. Nada se cultivará então e sobrará muito espaço para a natureza que será reinventada.

Nietzsche estava certo. Somos pequenos deuses em potencial. 

Rui Rodrigues

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Chegou sedenta



Chegou sedenta

Pensei que fosse de água. Servi-lhe um copo cheio, de água fresca, quase gelada. Vinha da praia com o corpo suado, a pele úmida, um leve perfume. Estava a passeio numa caminhada solitária para conhecer o lugar. Perguntou-me se eu morava ali ou estava de passagem, curtindo o fim de semana. Disse-lhe a verdade. Morava ali, no meu paraíso onde me encontrava comigo mesmo, dissecava a vida tal como ela era, com o bisturi do conhecimento que exala de textos de livros, da Internet, e de um rico passado. Não conhecemos tudo nem uma mínima parte, mas mesmo sem a pretensão de conhecer o tudo, vamos conhecendo as partes que o compõem, tanto quanto pudermos. Parece ser o que podemos levar desta vida, porque aqui chegamos nus e daqui nus sairemos. Não fosse o conhecimento e as lembranças e pareceria ao chegarmos lá, que de nada teria valido o viver, porque seria como se nunca tivéssemos existido. Ofereci-lhe um vinho e o almoço que ainda iria preparar: Frango grelhado com batatas coradas, uma salada, pão feito em casa no forno. Ofereci-lhe o banheiro, xampu, toalha limpa, sabonete, desodorante feminino das sobras de outros dias. Olhou-me nos olhos para medir a confiança que me daria. Aceitou, subiu ao banheiro da suíte no andar superior, tomou seu banho tranqüila e desceu como se fosse outra mulher. Aceitaria o frango com as batatas coradas e dividiria o vinho. Não nos conhecíamos. Jamais nos havíamos conhecido.

Ficou do meu lado tomando seu copo de vinho em pequenos e saborosos goles, enquanto me via cozinhar. Mas o quê? Como se pode chamar de cozinhar ao ato de pegar duas coxas com sobre-coxa de frango, passar-lhes uma pitada de sal, por para assar numa assadeira que previamente forramos com rodelas de cenoura, descascar umas batatas e partir em rodelas que arrumamos ao lado das peças de frango, e à parte preparar uma salada de alface, tomate aos pedaços pequenos, cebola picada, azeite, suco de limão e azeitonas? É um cozinhar muito simples, saudável, saboroso, rápido e que não cansa nem aborrece. Sobra tempo para conversar. Não trocou de roupa, mas a tanga agora estava mais generosa, mostrava as lindas pernas, a pele lisa, e a parte superior do biquíni agora mostrava claramente o arfar do peito. Seus olhos semicerrados não perguntavam, davam-se. Olhou-me nos olhos e disse que o sol estava muito forte naquele dia.  Mostrou o peito levemente rosado, e puxou o biquíni para mostrar a linha que separava a cor rosada da cor branca de sua pele. Não pude deixar de imaginar seus peitos sem o pano pudico em minhas mãos, acariciando-os. Ela aproximou-se. Beijamo-nos. Éramos dois necessitados do carinho um do outro. Não podia haver mal onde havia desejo de entrega, carência de carinho, de afagos, amar sem sermos obrigados a amar, apenas porque queremos amor, sem buscar definição em palavra que é apenas palavra, uma das muitas que nos confundem os significados da vida.

Nada queimou no forno, a salada foi conservada na geladeira até a hora de servir, e a garrafa de vinho ainda era quase virgem, quando nos sentamos na área, à sombra dos mamoeiros para matar uma parte da fome que nos afligia. Conversamos sobre a vida particular de cada um sem nos preocuparmos muito com a verdade. E o que era a verdade senão uma outra palavra das muitas do dicionário do linguajar que nos atrapalha e nos confunde o existir? Verdade era o que ainda não disséramos um para o outro, e que em breve seria dito, tudo a seu tempo, que a vereda da felicidade estava aberta, pronta para ser trilhada, sem censuras, sem obrigações, apenas pelo simples prazer de ser, estar, permanecer, ficar.

E depois do almoço, ali ficamos, permanecemos, estivemos, fomos um só, agarrados, abraçados, tocando-nos para sabermos como éramos, prazeres de existirmos, até que fomos um só, preenchendo o que nos faltava a cada um de nós e gozamos, deliramos, conhecemos o paraíso, o prazer de tornar a obscuridade do desconhecido em luz amiga e conhecida, quente, amorosa, um raio que sobe aos céus e agradece a Deus pelo momento. Uma lembrança para o fim da vida, para além da vida, para chegar no paraíso e dizer: Eu amei!

Amei um à outra e outra a mim, como a mim mesmo. Mais ainda, porque ela tem o que não tenho e tenho o que ela não tem. Mais do que gentilezas nos trocamos um ao outro, e descobrimos o que é felicidade. Sem culpas, sem falsos testemunhos, atestando a verdade que o amor é possível se nos esquecermos do que não querem que esqueçamos e nos lembremos do que nos querem fazer esquecer. A verdade do amor humano prevalecerá e resplandecerá em toda a sua plenitude quando os falsos profetas forem desmascarados e deixarem de proibir para nos governarem com proibições que nem Deus nos proíbe.

Estado civil não é um estado de espírito. É um espírito em determinado estado de existência.

Chegou e foi-se. Não como tinha chegado nem como tinha estado, permanecera, ficara. Foi-se com algo mais, com a vida com outro significado que me deixou de igual forma, com igual significado. Não há como encarcerar almas humanas, porque almas não conhecem grilhões, nem proibições. Almas são livres, habitam corpos que enquanto vivos são compartilhados, mas sempre unos, indivisíveis, a não ser para o amor, quando se compartilham e sentem o prazer de dizer: Eu vivi. Mesmo que nem sempre, mas apenas em curtos e preciosos momentos.

Nunca mais nos encontramos, não sei seu nome, seu telefone, seu endereço. Sei apenas que ela existe. Ela sabe que existo, e sabemos, ambos, que a vivermos juntos, jamais repetiríamos o momento. Tudo seria diferente, porque a água que passa no rio, num determinado momento, jamais volta a passar.

O que pode ser felicidade senão o momento em que se é feliz? Como podemos ter a pretensão de acharmos que podemos aprisionar a felicidade e fazer dela nossa escrava para toda a vida, até que a morte nos separe? São muitos os falsos profetas. Temos que ter cuidado para não jogarmos a vida fora, e os momentos de felicidade, os que justificam o viver, são raros, únicos.

Rui Rodrigues

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Uma velha profissão: Políticos artistas!




Uma velha profissão: Políticos artistas!

 Atores políticos ou políticos atores?
Nos bons tempos de um passado recente, os artistas eram políticos e reclamavam da política. Hoje estão calados. Nem dos políticos artistas reclamam. Os governos encontraram um meio de não reclamarem: Pagam-lhes shows ricamente e a peso de ouro todos os dias, todos os fins de semana, para uma platéia pagante que se ilude com o fato de anunciarem que estes shows são grátis.

Que estamos numa das maiores crises da história, não resta a menor dúvida possível. É fato, é notório, sente-se no bolso, na qualidade dos serviços públicos (ou na sua falta), nas compras de alimentação, em tudo. Respira-se crise, chora-se a vida, e desta vez não é conversa de quem tem a barriga cheia.

E invariavelmente continuamos falando de fulanos e de cicranas, todos políticos, atribuindo-lhes erros pessoais, culpando-os disto e daquilo, e quando se consegue enxergar que a culpa não pode ser apenas deles, culpam-se os partidos.

O regime político, o sistema, os termos da constituição, esses nem se discutem, preferem-se os nomes famosos da grande Broadway da política, toda iluminada por holofotes pagos pela mídia para aparecerem com suas roupas de marca, bem maquiados, sorrisos e comportamento Standard de “alto padrão”, demonstrando poder, discernimento, atenção, preocupação, vontade de resolver. Assistimos a peças todos os dias, vendo e sentindo contradições, muita ação e nenhum resultado prático, desde as três pancadas para abrir as cortinas do palco, todos os dias, até o cair do pano.

São raros os artistas que vêm ao palco receber as palmas. A maioria deles tem o rabo preso de tal modo aos bastidores que não têm como alcançar o palco. Alguns conversam com as autoridades que os inquirem sobre suas atividades escusas.

Foi assim em quase todos os países da Europa em crise desde 2008. A maioria dos que saíram, saíram à francesa, meio à socapa, tentando ser invisível em sua declinação de continuar a governar no palco da Broadway. Alguns ainda pensam em voltar apesar de tudo. Outros dizem que não tiveram culpa de nada e outros que nem se lembram.

E a platéia inteira, desde a platéia propriamente dita até o balcão e as frisas, diverte-se preocupada ao discutir o papel de cada ator, muitas vezes sem mencionar o autor, e muito menos sem ter lido o texto que é uma constituição para se atuar como deveria ser.

Não sei em que momento exato nem porque razão comecei a falar de política e entrei num teatro onde se representam peças todos os dias, como na Broadway, mas estou certo que público pagante e políticos atores também não sabem como se tornaram público nem como se tornaram atores quando o que queriam mesmo era governar a seu modo. Pelo menos era o que diziam à boca cheia pelas ruas e praças das cidades, vilas e campos. E ainda dizem.

Mas no fundo é como se subissem a escadaria de palácio, e ao abrir a porta entrassem no palco logo após passarem pelos bastidores. Pois a culpa de tudo, definitivamente e a meu ver, incluindo estas crises tremendas, são os bastidores: Os políticos entram no palácio, chegam aos bastidores e aí mesmo os transformam em artistas. Isto parece muito claro, porque o discurso antes de subirem as escadarias dos palácios, quando falavam a boca cheia pelas cidades vilas e campos, não é o papel que representam no palco, ao vivo, diariamente. Pelo contrário, são tão diferentes que a única ligação entre os dois comportamentos está nos bastidores. Um bom exemplo é o de um ator da mais tradicional ópera burda italiana, que sumiu sem quase se despedir do público e agora, experiente porque já passou pelos bastidores, apesar de todas as demonstrações de iniqüidade, mostrar desejos de voltar á Broadway. Perdão! Ao governo... Não é diferente em Portugal, onde o novo governo mantém cavacos antigos e tradicionais do tempo em que havia censura no palco e estuda seu papel pelo mesmo texto constituinte dos tempos do que se suicidou desastradamente do alto de uma cadeira que manteve no palco por 48 longos anos. O publico pagante português assistiu pacientemente à mesma peça todos os dias durante 17.520 dias. Haja paciência... E se formos à Espanha, constatamos que o Rei Liar dos tempos modernos sai para caçar elefantes em plena crise, quebra uma perna, é assistido em hospitais às custas públicas, e continua no palco mesmo depois que o PP, uma escola de formação de atores oposicionistas, se mostrou igual aos que combatia, depois que passou pelos bastidores evidentemente, logo que subiu as escadas do palácio, antes de entrar no palco. Nos bastidores se aprende política, entra-se no sistema sem medo de ser perseguido. Os representantes dos partidos e os que financiam as peças de teatro, digo, de governo, estão lá, ensinando política, "grátis". É "pegar ou largar" e todos pegam. è o público pagante que paga tudo. Até o champanhe!
  
Do teatro grego, perdão, da política grega, nem vamos falar... Já tem mais de três mil anos e inventaram o teatro democrático ou a democracia teatral. Para falar a verdade, inventaram a mais linda e bela e eficiente democracia do mundo, mas uma escola de teatro político ou de política teatral, esta liderada pelos Sofistas, do Sófocles, não a permitiram. Era participativa a democracia original, mas o que lhes interessava aos sofistas para poderem impor os seus papeis no palco era a Representativa. Ou seja, mesmo que trocassem os atores, a peça continuaria a ser representada "ad eternum". A boa, a verdadeira democracia, jogaram no lixo..

Espera-se o renascer do teatro político... Uma nova peça que não seja trágica, nem tragicômica, nem uma comédia. Precisamos de uma peça ultra-realista, tal como na pintura, onde as virtudes e as indecências sejam realçadas e nos entre pelos olhos de forma instantânea, que o público pagante possa entender e nem sinta a necessidade de discutir sobre os atores enquanto representam, porque escreveram a própria peça e a dirigem...

Afinal, o que interessa é a peça e não os autores. A mensagem vem da peça, não dos atores. Atores apenas representam e merecem salário justo por seu trabalho quando seu trabalho é justo. O mérito é da peça!

Breve em cartaz: A Democracia Real, Verdadeira, Participativa! Esta sim, uma peça que vale a pena ver, participar..

Rui Rodrigues

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

história para Maya - As crianças da caverna escura



(Histórias são apenas histórias, sempre fruto da imaginação. Filmes também. O medo sentido quando se vêm histórias no cinema ou quando nos contam em crianças, têm a função de nos preparar para a realidade do futuro e nos ajudar a vencer as dificuldades. As crianças de hoje, porque leram, ouviram ou assistiram a muitas histórias proporcionadas pelos pais, já não têm tanto medo como nas gerações passadas. O medo tolhe, imobiliza, e neste mundo não se pode ter medo de nada, mas deve saber-se sempre quando se deve agir ou ficar quieto perante uma ameaça real).

A caverna fica nos fundos da casa à direita. 

  1. A chegada na caverna escura

Quando empurraram Maralice para dentro da caverna, sentiu medo. Um medo muito grande. Aquilo não era uma brincadeira, e alem da escuridão total, fazia frio. Parecia que tinha entrado na geladeira da mãe dela, bem lá em cima no freezer onde fazia mais frio. Tentou sentir onde estava e percebeu que não estava só. Lá ao fundo ouviu um choro de criança como ela. Foi caminhando na direção do choro, muito devagar para não cair ou bater com a cabeça em alguma coisa, porque não enxergava nada, até que sentiu algo tocar em seus pés. Agachou-se e viu que eram os pés de uma criança que chorava, encostada na parede de pedra de uma caverna. Aquilo era uma caverna. Ouviu uns chiados e algo lhe bateu no rosto, algo fedorento. Eram morcegos. Agora que seus olhos se habituavam à escuridão percebeu que estava numa gruta cheia de morcegos, e que à sua frente estava uma menina que chorava. Aquilo nem era choro, era um soluçar triste de perder a respiração. Perguntou-lhe porque chorava, porque estava ali. A menina se agarrou a ela e disse no seu ouvido:
- É gente má que nos raptou. Pode olhar à volta, quando conseguir enxergar, que há mais meninos e meninas aqui nesta gruta. Estamos todos presos e alguns, os mais velhos, estão presos por correntes para não fugirem. Como apanharam você?

- Eu... Eu... Ofereceram-me balinhas e chocolates e me disseram que havia mais no carro ali perto e disseram que eu fosse até lá. Eu fui. Então me empurraram para dentro do carro e saíram às pressas dali, da pracinha onde eu brincava, e me trouxeram direto para cá. Taparam-me os olhos para eu não ver para onde iam. Eu me chamo Maralice e você?
- Delia. Chamo-me Delia. Disseram que minha mãe estava no carro e me levaram até lá. Quando cheguei vi que não era o carro de minha mãe, e quando ia reclamar me empurraram também. Foi muito rápido. Também me taparam os olhos e me trouxeram para cá. Estou com sede e fome. Eles dão comida?
- Só três vezes por dia. Tudo sanduíche e água. Quando queremos fazer numero um e numero dois é num banheiro improvisado aqui nos fundos que tem um pouco de luz que vem não sei de onde, mas quase não se vê nada. Cheira mal e não temos como limpar. Já tentamos gritar mas não adianta. Ninguém escuta. Isto aqui é uma caverna. 
Caverna escura quando a porta está aberta
- Quantos somos aqui? Perguntou Delia.
Uma voz mais grossa, de menino mais velho, veio lá do fundo. O garoto devia ter uns seis anos e estava com as penas amarradas por correntes a uma argola de ferro.
- Somos cinco: três amarrados e vocês duas. Meu nome é Marcos, os outros são Felipe e Beto. Nós três chegamos juntos. Estávamos jogando uma partida de futebol numa pracinha, chegaram uns caras dizendo que jogávamos muito bem e que queriam nos apresentar a um cara do Flamengo que estava sentado num banco. O cara disse que nos ia dar uma camisa do Flamengo e nos passaram algodão com um líquido que nos fez desmaiar. Depois chegamos aqui. São uns bandidos. Estamos com saudades de nossas mães, de nossos pais. Passaram o dia andando pela caverna. Maralice encontrou uma caixa grande de madeira com tampa. Tinha um cadeado e estava bem no fundo da caverna de frente para a porta da entrada. Era muito pesada e não podia movê-la. Avisou os outros.
Central de Polícia

  1. Na central de polícia

Maibi e Maya estavam na central de polícia. Havia guardas entrando e saindo, viaturas da polícia, homens e mulheres presos com algemas, algumas pessoas até tinham boa cara, mas a maioria era mal encarada mesmo, com cara de bandidos. Devia haver uma fábrica de fazer bandidos, porque quase todos eles tinham a mesma cara: Eram muito mal encarados. O olhar deles era duro, e nem rindo conseguiam ser simpáticos. Outros tinham até olhar doce, meigo, estavam bem vestidos, mas estavam com algemas e isso não podia ser nenhuma injustiça. Não se pode acreditar nas pessoas só pela cara e pela simpatia.
Maibi e Maya estavam na central de polícia para fazer uma queixa. O capitão da polícia, o capitão Pires, perguntou educadamente:
-Pois não, minha senhora, o que a trás aqui?
Maibi, mãe da Maya, falou:
- Estávamos na pracinha e vi quando um senhor chegou perto de uma criancinha e lhe ofereceu o que pareceu ser uns doces de chocolate. Não achei estranho porque pensei ser pessoa de família. O que achei estranho foi que quando voltei a olhar na direção de onde a criança tinha ido, um carro preto, o carro estava arrancando e pude ver que a criança se debatia lá dentro. Poderia ser uma criança daquelas irrequietas, poderia, mas não gostei da cara da motorista. Era mal encarada. Anotei a placa.
E Maibi tirou da bolsa um papel com o número de uma placa. E continuou:
- Pode não ser nada, mas resolvi vir aqui com minha filha e contar, porque se for assunto de família, ótimo. Se não for, estarei à disposição para ajudar. A criança pode ter sido raptada e como mãe não gostaria que isso acontecesse com a minha filha. Seria terrível.
- Agiu muito bem, minha senhora. Por favor, deixe o seu telefone para entrarmos em contato se vier a ser necessário. Se todos agissem assim nesta cidade, denunciando, a vida de todos nós seria mais tranqüila.
Maya, com seus quase quatro anos não se conteve e disse também:
- Se encontrarem os bandidos, prendam-nos a todos e se eu estivesse com a minha roupa de princesa Maya, eu mesma ia atrás deles e os obrigaria a virem aqui se entregarem para ficarem presos. Isso não se faz. É muito feio.
O guarda sorriu, e perguntou:
- Como é mesmo seu nome?
- Meu nome é Maya. Ás vezes sou a princesa Maya...
-Ora diga lá, princesinha Maya... Porque acha que eles são bandidos?
- Porque já vi aquela menina vir para a pracinha muitas vezes e vem sempre com uma babá. Hoje nem vi a babá...
- Maya... Porque não me contou antes que conhecia a mocinha?
Maya olhou admirada para a mãe e soltou: - Caraca, mãe... Porque você não perguntou... Nem me disse que vinha na delegacia. Se tivesse dito, eu contava...
O guarda e Maibi sorriram.
- E qual o nome da sua amiguinha, princesa Maya... Isso ajudaria muito – Perguntou o policial.
- Maralice... O nome dela é Maralice. É lourinha como eu e a babá dela também. O homem que a levou para o carro eu já o vi com a babá.
O policial ia anotando tudo num papel. Voltou a dizer que entraria em contato se fosse necessário. Quando terminou, agradeceu e Maibi e Maya saíram da delegacia. Estava na hora de Maya tomar o seu lanchinho com leite de chocolate, suco de fruta e um grande donut que gostava de molhar no leite de chocolate.  

  1. Na toca dos bandidos

Um sujeito bem arrumado, penteado, bonitão, simpático disse para a mulher que estava sentada no sofá vendo televisão.
- Não tira os olhos da TV. Se precisar sair do sofá, fica com os ouvidos atentos. Se as famílias forem ricas, pedimos resgate. Se não forem, vendemos a garotada. Entendeu? Não saia daí...
- A mulher assentiu com a cabeça. Pegou uma lata de cerveja, abriu e esticou as pernas para relaxar, empurrando-as contra o chão e sorveu uns longos goles de cerveja gelada. Disse laconicamente:
- Pódeixá. Já estou com o bloco de notas para anotar tudo. Logo vão dar notícia de desaparecimento. Há uma semana que raptamos crianças e nada de notícias na TV. Parece que gostam de silêncio ou que ninguém se interessa por raptados. Será que não divulgam porque não é matéria paga?
-Não sei nem me interessa, Ra. Vou dar uma olhada nas crianças.
-Certo, Boni, eu fico na minha.
O sujeito abriu a porta da casa, feita só de tijolos, no meio do mato e entrou numa casinha pequena nos fundos. Abriu a porta. A uns três metros, na parede em frente, havia um buraco e outra porta. Esta dava para uma gruta. O cano, que tinha sido instalado por dentro da parede, permitia ouvir os sons que vinham da gruta. Estava tudo em aparente silêncio. Então colocou uns óculos para ver de noite, e fechou a porta da rua. Tudo ficou escuro porque aquele aposento não tinha janelas. Quando abriu a porta pôde ver que as crianças estavam em seus lugares. Os garotos amarrados e as duas meninas uma junta á outra. Soluçavam. Nenhuma das crianças viu o homem naquela escuridão. Tirou os óculos especiais, fechou todas as portas, saiu e entrou na casa da frente onde estava a moça chamada Ra. Disse:
- Estou pensando... Se pudéssemos pegar aquela menina bonitinha que a mãe chama de Maya... Sei que é perigoso voltarmos lá na praça. Teríamos que fazer de forma diferente. Seriam três garotos e três meninas. Seria uma boa grana.

  1. Na casa de Maya
- Mãe... Aquela gente toda na polícia. Com algemas. Coitados. O que eles fizeram? – Perguntou Maya enquanto desenhava no quadro negro que a mãe tinha colocado na parede do quarto.
- Coitados? (Maibi estava admirada com a candura da filha). Alguma coisa ruim devem ter feito, porque a polícia só prende bandidos e pessoas para fazer perguntas quando são suspeitas de ter feito alguma coisa ruim.
- Pois é, mãe. Se me oferecerem alguma coisa na rua, eu corro pra você. Não aceito não.
- Isso, Maya. Já deixei você alguma vez sozinha?
- Não! ... Tem sempre alguém perto. A dinda, o dindo, a vó, você e até o vô Rui quando vem aqui em casa. Vocês não largam do meu pé... – E Maya riu às gargalhadas.
-É Maya, mas toma sempre muito cuidado. Estamos sempre por perto, mas vai que em algum momento não estamos. Nunca saia do lugar onde estiver. Alguém vai chegar. Se você não sair do lugar te encontramos. Caso contrário, já viu... Não temos jeito de te encontrar. O que você está desenhando?
- O homem do carro que levou a menina. Está bem parecido.
Maibi olhou o desenho. Eram uns garranchos muitos bem desenhados, com proporções, mas o rosto podia ser o de um milhão de homens residentes em qualquer lugar do Brasil. Era branco, jovem, o cabelo bem cortado virado para um lado. As orelhas deveriam ser grandes porque Maya as desenhara assim e usava óculos escuros. Maya olhava para a mãe apreciando o seu lindo desenho quando pôs a mão sobre os óculos do rapaz e disse:
- Os olhos dele são pretos.
- Como você sabe, se está de óculos?
- Estava de óculos hoje, mas já vi os olhos dele outro dia.
- Ha... Tá... E o que é aquilo ali no braço dele?
- Aquilo... Você não está vendo, mãe? “Aquilo” é uma tatuagem. Se mostrar uma igual sei qual é.
 Maibi foi para o computador, digitou “tatuagens”, olhou, mostrou para a Maya. Depois digitou “tattoo”, que era tatuagem em inglês e outras imagens apareceram. Maya apontou para uma delas.
- É essa mãe! – Maya mostrou um enorme dragão vermelho jogando fogo pela boca e pelo nariz.
Não se tinham passado mais de dez minutos no computador. Maibi pegou a máquina fotográfica digital, tirou uma foto do desenho de Maya, baixou a imagem do “tattoo” para o pendrive e desligou o computador.
- Vamos deitar, dona detetive desenhista, que por hoje chega, já é tarde e precisa dormir para ir para a escola amanhã cedo... Já nanar...
Na manhã seguinte a primeira coisa que Maibi fez foi passar na delegacia para mostrar o desenho de Maya e o tattoo. O capitão apresentou-a ao Delegado que ao ver o desenho de Maya disse: Perfeito! Desenho perfeito... Eu conheço esse rosto. É do Boni, um foragido da polícia.

  1. A caixa preta na caverna

Noite ou dia para as crianças na caverna era sempre noite porque não entrava luz. Boni sempre fechava a porta da entrada, colocava os óculos para ver de noite, e só então levava a comida para as crianças e substituía o papel higiênico. Quem lavava o banheiro eram elas mesmas. Nessa noite, Boni tirou as correntes dos meninos dizendo:
- Agora que já sabem se comportar vou tirar as correntes, mas não façam bagunça senão vou fazer vocês chorar muito.
Depois saiu fechando a porta.
Soltos, os meninos esticaram as pernas. Foram ao banheiro. Depois voltaram e junto com as meninas combinaram de tatear toda a caverna, para saberem como era e se tinha alguma coisa por lá além da caixa enorme que Maralice tinha encontrado. Nada. Não havia nada mais, Voltaram à caixa. Não sabiam se tinha alguma coisa dentro. Resolveram usá-la para se sentarem. Mais tarde, as crianças não sabem quando nem a que horas, porque na escuridão perdiam a noção do tempo, Boni voltou. Ao sentirem abrir a porta as crianças levantaram-se da caixa e ficaram em pé. Boni trouxe-lhes uns colchões, travesseiros e lençóis para elas dormirem e voltou a sair. O primeiro a chegar, Marcos, já estava ali há três dias. Não tinham idéia de quanto tempo ainda iriam ficar ali. Beto e Felipe concordaram que para trazerem colchões ainda iriam passar muito tempo naquela prisão. Os colchões vieram em cima de uns estrados de madeira.
- Felipe...- Disse Beto – Vamos abrir essa caixa!
- Como? Não temos como. (Felipe tinha certeza que era impossível. Não havia nada que pudessem usar para abrir aquela fechadura).
- Temos sim. Lembra que tínhamos combinado explodir o ralo do play hoje?
Felipe lembrou-se. Beto adorava fogos de artifício e com a mesada do pai tinha comprado umas “cabeças de nego”. Já tinha feito isso antes e até tinha voado pedra até o segundo andar do edifício. Eles e os gêmeos lá do prédio, embora fossem crianças exemplares, legais, simpáticas, de vez em quando fugiam do padrão e faziam coisas dessas, como derrubar bananeiras do jardim para roubarem os cachos. Não era exatamente roubar. A síndica do prédio é que se aproveitava da área de jardim, plantava bananeiras e não dividia com os condôminos. As crianças do prédio até faziam uma certa justiça. Por isso ninguém as denunciava quando cortavam as bananeiras.
- E o barulho? – Perguntou Felipe preocupado.
- Ninguém vai ouvir. Lembra que gritamos e ninguém nos escuta? – lembrou Beto
E se lançaram ao empreendimento. Não tinham fósforos, mas Beto aprendera com o pai a fazer fogo esfregando uma madeira na outra até esquentar bastante e uma delas pegar fogo. Do estrado de madeira dos colchões conseguiram tirar umas lascas pequenas e furá-los para tirar a espuma de nylon que sabiam que pegava fogo muito facilmente. E começaram o trabalho de esfregar uma madeira na outra, revezando-se os três: Beto, Felipe e Marcos. Não sabem quanto tempo se passou, mas como não estavam com fome, ainda demoraria a que o tal de Boni lhes vir trazer comida. Beto tirou quatro cabeças de nego do bolso, amarrou-as à fechadura do Baú com os plásticos do colchão que o Boni nem tivera o trabalho de retirar, e envolveu tudo com enchimento dos colchões, pronto para ser ateado fogo. Quando finalmente Felipe gritou que tinha conseguido uma brasa na madeira, todos sopraram para que desse uma pequena chama. O forro do colchão usado como combustível logo pegou fogo. Levaram-no até as cabeças de nego e prenderam fogo. A outra parte do forro do colchão que estava envolta em plástico à volta das cabeças de nego logo pegaram fogo. Todos se afastaram para o fundo da caverna. De repente, quando menos esperavam...

                                                                                                                        CABUM!

Foi um “cabum” enorme porque as quatro cabeças de nego estouraram ao mesmo tempo. Ouviu-se um barulho metálico. O cadeado estava solto com a violência do estouro. Os restos das chamas ainda permitiram ver o que continha o baú. Era uma caixa de ferramentas. Tudo enferrujado. Aquela caixa poderia ser a salvação deles. Por sorte nem o Boni nem a Ra tinham ouvido o barulho. Boni tinha saído e ra estava de olho nas notícias da TV.

  1. Na delegacia os pais das crianças estão desesperados.

Os pais das crianças choravam, desesperados, porque amavam muito os seus filhos e temiam que os bandidos os maltratassem. Queriam justiça. Reclamavam da falta de segurança. Havia psicólogos na delegacia que tentavam conversar com eles. Quando o capitão Pires apareceu, junto com o delegado, as perguntas e as reclamações subiram de tom. Os ânimos estavam exaltados. Pires tentou serenar os ânimos:
- Calma. Calma. Senhores pais e mães... Por favor... Tenho notícias.
Fez-se silêncio que até dava para ouvir as moscas se houvessem moscas na delegacia. (E continuou) – Dona Maibi e a filha dela Maya, nos deram a placa do carro do último rapto, o da menina Maralice, Maya, fez uma excelente descrição do bandido, com um belo desenho que fez. Esse bandido usa uma tatuagem no braço que Maya também identificou. Graças a ela, conseguimos identificar o bandido. É um sujeito foragido da justiça e em breve o apanharemos. Confiem na polícia. Tudo vai acabar bem.

  1. As crianças pensam rápido

Felipe avisou que se não tinham ouvido o barulho do estouro das cabeças de nego, ou era porque os bandidos não estavam em casa, ou por que não tinham ouvido mesmo e deveriam aproveitar o momento para derrubar a porta com as ferramentas. Poderiam fazer barulho à vontade, menos na ultima porta, porque essa estava bem de frente para a casa onde os bandidos moravam e bem perto. Pegaram as ferramentas e começaram a bater na fechadura até que os parafusos se soltaram. A porta abriu. Primeiro ficaram meio cegos pela luminosidade. Depois que se habituaram, viram a segunda porta. Incrivelmente só estava encostada. Empurraram a porta bem devagar, e foram saindo sem fazer barulho. Abriram o portão da rua que também só estava encostado e caminharam juntos como se estivessem passeando. Quando chegaram a uma rua maior onde passavam ônibus, fizeram sinal para o motorista e contaram rapidamente que tinham sido raptados e que haviam fugido. Queriam uma carona até a delegacia mais próxima. O motorista disse que não, mas aí o povo começou a gritar:
- Que é isso, motorista? Vai deixar as crianças sozinhas sem ajudar? Não senhor!... Vamos até a delegacia mais próxima...
O motorista se convenceu e as levou até a delegacia. O ônibus e os passageiros foram liberados em seguida. Uma viatura da polícia as levou até a Central onde o capitão Pires já as esperava junto com os pais delas.

A história saiu nos jornais e nos noticiários das redes de televisão, com o desenho de Maya estampado na primeira página. Uma cópia está na delegacia de Polícia bem por detrás da mesa do capitão Pires que conta a história para todo mundo que pergunta que desenho é aquele:

-É o desenho da mais jovem detetive mirim desta delegacia. Ela desvendou o crime e os bandidos estão presos. Só tem três anos e oito meses...

Fim da história... Gostou? Pede para ler de novo!

Rui Rodrigues