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quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Procurando uma identidade.

Procurando uma identidade.



A noção que temos do tempo, é de que é uma coisa contínua, e a noção que nosso cérebro tem é que vivemos sempre num tempo “presente”, e, a unir o tempo e nossa sensação de tempo, temos uma sensação de identidade formada por nós mesmos, que nos faz diferentes dos outros. Será que faz? Somos assim tão diferentes dos outros?

Nosso aspecto externo é realmente diferente e sempre mostramos nossas diferenças pelas roupas, adereços, postura, modo de falar que nos dão ou reforçam uma identidade. Por isso a foto nos documentos que nos identifica e que, por não ser suficiente, são acompanhados de uma impressão digital. Nos “bons” tempos era simplesmente assim, mas agora se faz necessário algo mais, como um exame instantâneo de retina, identificação por voz, e ás vezes duas testemunhas. Minha primeira noção de “identidade” foi muito antes de ter tirado o meu primeiro “bilhete de identidade” numa dessas repartições do governo que tem tanta gente para governar que tem sempre que saber quem é quem, quando nasceu, onde, mas que raramente pergunta como ou qual a razão. Minha primeira identidade foi a sensação de que eu era filho do Gabriel, de minha família, e que tinha o maior orgulho disso. Como meu pai e minha mãe se separaram e fiquei com a família de meu pai, a figura de minha mãe estava ausente. Tentaram substituí-la pedindo-me para chamar minha avó de mãezinha, e mais tarde, muito mais tarde, minha madrasta de mãe, mas nunca tive muita convicção disso e minha madrasta sempre chamei pelo nome dela. Minha identidade era só minha. Como não compreendia muito bem o mundo que me cercava, cheio de tantos mistérios, os adultos me dizendo que isso não era coisa de criança, minha identidade era a de ser filho do Gabriel, pertencer a uma família que me cuidava, e isso me deixava tranquilo e feliz. Era o bastante.

Mas essa minha “identidade” morreu jovem, porque já aos sete anos eu era um garoto que estudava numa escola pública na qual entrei já sabendo escrever meu nome, mas ainda sem entender o que as letras queriam dizer nem juntá-las para produzir sons e entender o que estava escrito. A nova identidade me dava o direito de andar pela cidade, entrar em conduções públicas, ir ao cinema sempre que sobravam alguns trocados lá em casa para diversão. Quando aos dez recebi a notícia que minha mãe falecera, lamentei profundamente não ter tido oportunidade de voltar a vê-la, depois de uma separação de pouco mais de oito anos. Jamais a veria, mas a vida continuava para os vivos, eu estava vivo, e me identificava com a nova identidade. Eu era outro, tinha uma nova identidade, mas ainda não percebera muito bem essa transição sem data definida e anotada. Sentia apenas que tinha uma “nova” identidade à qual me adaptava rapidamente.


Passei por muitas alterações de identidade ao longo dos tempos que já passaram, como quando tive a minha primeira ereção, completei o secundário, quando me formei, quando me tornei contribuinte do Imposto de Renda, e quando comecei a trabalhar. Quando casei, quando me tornei pai com a ajuda da parceira por algumas décadas de minha vida. Em todas elas carreguei na carteira em meu peito as identidades passadas, desde a daquele garoto que era filho do Gabriel, vivia feliz numa aldeia de montanhas nevadas no Norte de Portugal e tinha orgulho de sua família. Podia dizer que jamais perdera minha identidade, mas vendo estas coisas ao longo do tempo, parece-me que mudei muito. Já não tenho tanta coisa em comum com aquele garoto legal. Continuo legal como impressão digital de identidade, mas não sou mais o garoto. Admiro o garoto. Tenho orgulho dele e do homem em que se tornou, apesar de tantas alterações de identidade. Mas as identidades a que estamos habituados são estáticas, não dinâmicas. Por isso insistem tanto em renovar nossos documentos, imprimindo-lhes fotos atualizadas, insistindo em adicionar-lhes nossas impressões digitais mesmo sabendo que elas não se alteram ao longo dos anos.


Mas agora estou com 68 anos, e embora os prédios não tenham mudando muito sua arquitetura a pesar de terem ganhado painéis de vidros externos, a natureza não tenha criado nada de novo na flora nem na fauna, e o céu continue azul refletindo-se no mar, parece que preciso de uma nova identidade.

Primeiro preciso de novas fotos. Meu corpo mudou bastante e fiquei meio gordo. Continuo com cabelo, mas está meio ralo. Ganharei minha primeira dentadura em breve, mas aquelas noites de sexo jamais serão as mesmas. Boate nem pensar porque andam matando por lá, gente morre queimada porque soltam fogos lá dentro, e sair à noite é completamente meio perigoso. Os cinemas fecharam e para assistir a alguns filmes à moda antiga terei que ir a um shopping, o ultimo reduto das salas de cinema, mas ouvi dizer que a velha forma de fazer um “‘happening” mudou: Agora é uma juventude que invade os shoppings correndo, alvoroçando todo mundo e qualquer dia estarão dando tiros, fazendo comícios como nos velhos tempos da China quando era obrigatória a leitura do livro vermelho de Mao. Desisti de usar relógios de marca, porque têm um grande defeito: São os que mais facilmente são roubados. Terei que ser muito comedido ao usar palavras, porque algumas estão socialmente proibidas e qualquer dia serei obrigado a dizer sempre sim, sendo preso se disser não.

Nessa minha busca por uma nova identidade que possa representar a minha pessoa, cheguei até a pensar, já no desespero, em me afiliar à Legião Estrangeira, um órgão do governo francês que, depois de servirem durante uns quatro ou oito anos, dá aos soldados uma nova identidade, mas não me aceitariam nem como general barrigudo por causa da idade e do peso das espingardas e mochilas que ficam cada vez mais pesadas, embora eu até pudesse ajudar muito com meus conhecimentos e experiência em outros setores como o de planejamento, controle de custos, contratações, engenharia de sufoco, quando as obras estão atrasadas ou necessitam de soluções técnicas que não passam nem pela cabeça do mais competente dos colegas. Quando soube que eles mesmos que escolheriam a minha identidade, desisti. Há sempre alguém em nossa vida dizendo-nos o que devemos ser, como devemos ser, quando devemos ser, e quando negar tudo isso.


Pensei em me filiar a uma ONG – Organizações Neo Governamentais – mas teria uma vida muito agitada e teria que ser “voluntário” o que significa que seria o único a não ganhar dinheiro com essas organizações entupidas até o gogó de dinheiro doado, transferido, lavado, e de oitenta por cento de verbas públicas porque os outros 20 por cento sofrem operação de estorno, retorno ou sumiço. E sempre ficaria sujeito a raptos, assassinatos, desparecimentos, prisões em frias regiões da Rússia ou de quente países africanos. Talvez o mais sensato seja esperar em frente a meu computador, notícias do mundo enquanto conseguir ouvir o tic-tac do relógio marcando os segundos, um a um, em companhia de minha fiel gata de quatro patas, a Sarkye, vendo minha família e amigos de vez em quando.

Embora sem nova identidade ainda definida, o garoto está feliz. Sabe onde está, para onde o tempo vai, como vai, porque vai, e faça chuva ou faça sol, é bom não confiar muito nem nas previsões do tempo. Sempre me protegendo de bandidos, assaltantes, deixados à solta. Seria o caso dos governos também buscarem uma nova identidade, a começar pela forma de governar?

© Rui Rodrigues