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sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Três famílias em três etapas.

Três famílias em três etapas.



A primeira família nem sabia onde estava, não se questionava. Apenas olhava a natureza, alimentava-se dela. Rabum, o pai, fazia parte do grupo de guerreiros, sua mulher, Altrid, colhia alimentos junto com outras mulheres que cozinhavam para toda a tribo. O filho, Zenfrid, de 12 anos, era já um homem feito e caçava com ele no mesmo grupo de caça. Quem conseguisse morrer deitado em seu leito de palha, não o fazia depois dos 40 anos. A vida era muito difícil e morria-se cedo, ora caindo de uma árvore, ora de febres ou comido por um animal selvagem, sentindo os dentes da fera na carne antes que a consciência de viver se apagasse, vendo o próprio sangue esvair-se pela terra. A tribo era de cerca de 60 indivíduos quase todos consangüíneos. Altrid não era. Fora capturada de uma outra tribo com que se haviam cruzado num território de caça. Houvera uma breve luta, e Rabum ficara com ela. Apesar de escrava, nascera entre Rabum e Altrid um amor profundo. Ajudavam-se no dia a dia. A única coisa que o incomodava era o chefe da tribo. Ele podia deitar-se com a mulher da tribo que escolhesse, e para o bem da comunidade, Rabum não questionava isso, fingia que não sabia. Um dia, se tivesse sorte, formaria o grupo que se separaria da tribo que só podia suportar pouco mais de 60 indivíduos. Quanto menos gente tivesse a tribo mais tempo podiam ficar no mesmo lugar explorando caça e coleta de frutos e folhas comestíveis, mas ficavam fracos em número para se defenderem. Com muita gente tinham que estar sempre abandonando seu território porque tudo nele se esgotava rapidamente. Ele, a mulher e o filho eram a parte boa, aquilo pelo qual valia a pena lutar. O restante da tribo cooperava entre si, mas cada um procurava ser mais protegido pelo chefe e pelo druida que os ameaçava com as forças da natureza. Dormiam juntos, cada um protegendo os outros. Zenfrid era um bom filho, a mulher estava sempre disposta a aliviar-lhe o peso dos dias ora com comida ora com seu corpo. Era costume o chefe determinar quais crianças viveriam depois de nascerem. Se a tribo precisasse de guerreiros, mandava abater as fêmeas. Se precisasse de fêmeas, escolhia apenas os machos mais fortes para sobreviver. Zenfrid estava na época de acasalar também e não havia fêmea disponível. Então, num dia de fim de Inverno, quando a neve já começava a derreter, os três se juntaram a um grupo de uns vinte e saíram para nunca mais voltarem. Levaram da tribo apenas uma bolsa de couro com brasas dentro cuidadosamente protegidas para servirem de semente para o fogo. A tribo ficou. Iam constituir uma nova sociedade, num mundo infinito, sem aparente fim, cheio de florestas, rios, montanhas, onde o chefe não fosse tão prepotente, mas cedo iriam aprender que se o socialismo entre eles era para dividir tudo, os dois chefes e seus ajudantes eram sempre menos socialistas, queriam sempre a melhor parte, a maior quantidade. Rabum sabia também que se não agisse assim em sua nova tribo, como chefe, perderia o lugar para outro que fosse mais forte, mais exigente, menos socialista no dividir, mais ambicioso e prepotente no tomar. Quando faleceu em seu leito de palha, sua mulher Altrid já falecera. Foi seu filho que lhe segurou a mão e lhe aliviou a dor da ultima partida, da ultima separação. Morreu sem definir o que prevalecera, se o prazer de viver ou as dificuldades, todas elas, porque passara. Mas se o Druida estivesse certo, depois resolveria se voltaria ou não, mas sem Altrid e sem Zenfrid, não valeria a pena.



A segunda família vivia numa casa decente na península ibérica numa aldeia com 500 habitantes, junto a um rio onde havia uma ponte construída pelos romanos alguns séculos atrás. Bastantes séculos. Moravam na casa e cultivavam umas terras que haviam herdado de seus ancestrais, geração a geração. Não havia mais terras para ocupar. Tinham que ser compradas. José colhia morangos, maçãs, batatas, couves, criava um porco, tinha algumas galinhas e coelhos. Na aldeia faziam-se trocas. Quem precisava de cebolas trocava por batatas, de comércio havia apenas dois armazéns, um mais dedicado a bebidas, azeite e produtos que não se cultivavam por ali, como arroz e farinha de pau [1], o outro com roupas, ferros a carvão ou elétricos, rádios sob encomenda, sapatos, velas, fósforos, lamparinas e muito milho que era produto da terra. José já não vivia com sua mulher, Isabel porque se haviam separado e dos dois filhos um, Afonso, herdaria as terras pequenas que mal davam para duas pessoas viverem do que plantassem, o outro, Geraldo, teria que emigrar. Um dia José que era também de desenhar, pediu empréstimos pela aldeia para comprar uma prancheta, canetas, tinta nanquim, mas ninguém quis emprestar. Não viam futuro e se emprestassem o dinheiro seria perdido, que era assim que pensavam, embora José fosse tido como bom homem, honrado e cumpridor de seus deveres. Então um dia, cansado, resolveu emigrar. Foi para o Brasil, deixou a velha mãe, e os dois filhos com uma irmã e uns trocados para viverem por mais uns três meses, dinheiro esse proveniente da venda das terras pequenas que tinha. No Brasil submeteu-se a um salário que só por si não daria para alimentar os dois filhos, mas dividiu o mesmo apartamento com mais seis entre emigrantes e brasileiros, economizou o que pode, e em quatro meses de trabalho já mandava uns trocados que davam para manter os filhos. Anos depois os chamou para o Brasil, depois de cumprir todas as leis do país, enviando-lhes “carta de chamada” logo que montou seu próprio escritório de desenho. Voltou a casar. Não conseguia ver seus filhos, porque eles estudavam. Quando chegava em casa, pouco tempo tinha para falar com eles, trocar impressões, falar de problemas e de coisas boas. Eles estudavam até altas horas da noite, obcecados em obter um diploma com mérito. Um se formou em engenharia e o outro em medicina. Ambos saíram de casa logo que se formaram, constituindo novas famílias. Chegou a conhecer dois netos que também via pouco. Quando faleceu só o filho médico lhe segurou a mão para lhe dar forças para partir aos 87 anos. O outro andava em projetos várias fronteiras além, muito longe. Amavam-se à distância. Desde sua formatura, pai e filho se viram umas quatro ou cinco vezes em cerca de trinta anos. Ao partir, José reviu toda a sua vida, cultivando sua macieira e vendo as primeiras flores quando ela era ainda uma haste pequena de cerca de metro de altura, seus contatos na aldeia para pedir empréstimos e as desculpas esfarrapadas que lhe deram, sua alegria quando lá voltou e mostrou que estava bem melhor que eles de finanças também honestas, sua vida inteira e assistindo à formatura dos filhos. Ele vencera na vida arriscando-a em seu futuro e de sua própria família. 



A terceira família vivia numa cidade do interior do Brasil. É uma cidade pequena de cerca de 50.000 habitantes. O pai, Carlos, trabalhava na construção civil. Aprendera a fazer concreto e massa triviais, daqueles sem responsabilidade de adequar a cálculos, porque as construções eram pequenas, no máximo de dois ou três pavimentos. O problema é que havia muita gente que sabia fazer o mesmo. Das poucas obras disponíveis conseguia apenas trabalhar em umas três durante o ano inteiro. Era pouco para dar uma boa educação à única filha que tinha, Elizabete. Sua mulher Sara ajudava na renda da casa fazendo peças de artesanato. Era uma boa mulher. Por ela já tinha dispensado muitas pretendentes que o que queriam, mas Carlos sempre sobrepesara as vantagens e as desvantagens. Não jogaria fora o ouro que tinha, por algo que desconhecia apesar de muito atraente, mas temia por sua pouca assistência ao lar, porque fazia muitas horas extras para sustentar a família. Elisabete, a filha, era inteligente e tinha excelentes notas. Certamente conseguiria passar no Vestibular, mas sairia para outra cidade e tinha que mantê-la numa república, pagar-lhe roupa, alimentação, livros e outras despesas que o Imposto de renda não considera. Quando a mulher lhe disse que estava amando “outra pessoa”, jamais imaginou que essa outra pessoa fosse uma mulher. No principio sentiu-se um “Zé mane”, até impotente, mas depois compreendeu que o amor se moderniza e se adapta às circunstâncias da moda da humanidade. A humanidade segue a moda assim como a fé segue religiões e desfiles de moda do mundo dos desfiles: Se disserem que a moda é cor de rosa, será, se disserem que é saia rodada, assim será também. Há sempre quem faça a moda, seja a moda de roupa, de perfumes, de sexo, de libertariedade ou de juros bancários. Mas o certo é que perdeu a mulher e a filha Elizabete continuou estudando, Carlos pagando as prestações de um programa do governo que garantia os estudos da filha que, depois de formada, continuaria pagando as prestações ao governo terceirizado sujeito aos juros do mercado. Sua filha provavelmente trabalharia quase a vida inteira para pagar o curso que fizera em apenas cinco anos de universidade. A filha, desde que entrara para a Universidade em Ouro Preto, se formou e nunca mais a viu, porque ela se mudou para os EUA por ter sido convidada por uma empresa americana. Soube por cartas e e-mails que amigos lhes liam, que sua filha casara, mas que a vida estava difícil por causa de uma crise econômica e estava até com dificuldades para pagar o apartamento que comprara junto com seu marido. Carlos se aposentara, entretanto, com dois salários mínimos que via encolherem com a inflação. Ainda pagava a conta do crediário da filha para estudar e que ela esquecera que era de sua responsabilidade. Quando Carlos sentiu que sua vista se escurecia e tombou inerte no chão, seus olhos contemplando o infinito, ainda demorou uns dez minutos para deixar de ver por completo. Pensou na vida que levara, o que valera a pena e o que não valera. Imaginou sua filha no apartamento que tinha dificuldades para pagar, e pensou na sua dificuldade de pagar-lhe os estudos como se ambos fossem escravos de uma vida livre, social e democraticamente social e antes de se apagar por completo, sentiu a falta de uma mão.

® Rui Rodrigues   



[1] Farinha de mandioca.

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