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segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O empacotador de lembranças do Mali




O empacotador de lembranças do Mali

Modibo Keita não acreditava na sorte nem em seu meio-irmão, o azar. Um dia, em 1961, caminhando ao lado de seu camelo pelas areias que levavam a Tombuctu encontrara uma ferradura. Nessa época tinha oito anos e ia com sua mãe e seu pai à cidade para fazerem compras. Apanhou a ferradura e jogou-a fora imediatamente porque “sabia” que jamais teria um cavalo. Sua família sempre fora mais ou menos pobre, dependendo do tempo, dos ventos do deserto e do rio Níger. Teriam que ir pelo menos uma vez na vida a Meca, mas jamais teriam dinheiro para a viagem, e Meca ficava muito longe. Tinha certeza que nisso falharia com Alah. Por isso a ferradura não lhe iria servir. Seu pai que o vira apanhar e jogar fora a ferradura, parou o seu camelo, foi até ela, apanhou-a, passou-lhe os dedos para retirar uns pequenos e soltos grãos de areia e disse-lhe que talvez um dia precisassem dela. Guardou-a carinhosamente no saco de algodão colorido que a mulher tinha tricotado para ele.

Modibo Keita tinha apenas oito anos mas já percebia quando uma pergunta podia deixar alguém encurralado, procurando forma de responder de forma superior e inquestionável, sem contudo o conseguir. Sabia que quando se fazem perguntas dessas a um superior ou a um pai, se ele tiver resposta, ficará orgulhoso e com ares de superioridade, mas se não tiver, criança sempre fica arriscada a apanhar. Mulheres não podem perguntar nada. Aprendem desde crianças a não perguntar. Os que falam em nome de Alah e dizem que o interpretam, não permitem que se pense e muito menos às mulheres que os parem. Mesmo assim perguntou:

-O senhor já foi a Meca, Pai?


Como esperava, a resposta demorou a vir. Contou as passadas do camelo desde que fizera a pergunta até obter a resposta. Na sexta passada o camelo começou a evacuar. Na oitava passada o pai respondeu-lhe.

- Quase que fui, meu filho, mas as despesas com o teu nascimento foram muitas e não pude ir. Alah vai entender se um dia eu não puder ir a Meca. A vida está muito difícil, e o que vendo mal dá para pagar a comida e os impostos. Quando os franceses andavam por aqui, de 1855 até 1960, ainda havia alguns postos de trabalho bem pagos. Depois que saíram os impostos aumentaram, houve mais empregos porque o governo os distribuiu entre amigos, mas cada vez mais mal pagos. Um dia me ajudarás a ir a Meca. Iremos juntos. 

Modibo Keita pensou na mãe. A mãe jamais iria a Meca, e se os heróis iam para o Paraíso onde encontrariam sete virgens à sua espera, pensou que se tivesse nascido mulher e quisesse ir para o Paraíso teria que ser virgem até o final da vida. Não havia outra forma de uma mulher ir para o Paraíso, nem sua mãe que tanto amava. 


Lembrar-se-ia, no futuro, deste momento porque era importante, e tudo o que era importante Modibo Keita guardava em pacotes que carregava ao longo do tempo. A importância deste pequeno pacote eram a lembrança de seu bom pai, de sua boa mãe cujas ponderações só eram ouvidas no lar e entre as amigas, mas jamais de viva voz nas ruas. Se futuramente algo mais acontecesse relacionado com isto, acrescentaria a este seu pacote de lembranças.

Modibo Keita cresceu. Aprendera na escola que seu país já fora o mais rico de África, o maior de todos os Impérios medievais africanos, nos séculos XIII e XIV. O Império Mali.  A riqueza se fez pelo tráfico de escravos, ouro, sal, peixe, cobre, couro de animais, noz de cola e cavalos. O maior território imperial, maior ainda do que o Império de Gana ou Songhai. Dizem que o grande Imperador Mansa Mussa, que trouxe o islamismo para o Mali, em sua peregrinação a Meca levou cerca de 15.000 homens e cem camelos carregados de ouro. Naqueles tempos conviviam muito nem com cristãos e judeus. Depois veio o declínio por causa dos descobrimentos portugueses que lhes tomaram o comércio, e o golpe de morte por ataque marroquino que desfez o Império no século XVI. Depois vieram os franceses que ficaram de 1855 a 1960. Com estes até havia algum emprego que era distribuído pelos mais amigos do governo e os “mais crentes ou fiéis seguidores do Islã”, mas havia alguns aspectos que não estavam muito claros, e de vez em quando a fé batia de frente com a justiça. 

Este passado de glória de suas origens Modibo Keita também guardou num pacote especial que sempre carregava consigo. Sabia que o Mali jamais voltaria a ser um Império, a ser rico como foi no passado. O que fizeram eles, com o dinheiro, os que dão ordens e dizem que religião seguir e como interpretar o que diz Maomé ou Alah? Acaso são essas vozes de Maomé ou de Alah? Gastaram em pompas e nada fizeram pelo povo que continua até hoje com muita fé e poucas condições de sobrevivência, porém fiel, sempre fiel, como se aprende na Universidade de Sankore, a Mesquita. Este era um pacote inesquecível. 



Sua mãe falecera há pouco tempo. Tinha poucas conversas com sua mãe, o que lhe tornara a educação desbalanceada. Felizmente, em meio a tanta dor de a perder, ela não assistira nem ouvira notícias da localidade de Aguelhok, ao norte do Mali: um casal amigo de Modibo Keita tinha resolvido viver junto sem serem casados.  Invejosos e extremistas que só entendem de Maomé e Alah o que desejam entender, apedrejaram o casal até a morte. Modibo imaginou se tivesse sido com sua mãe. Era impossível que um deus bom como Alah e um profeta como Maomé determinassem, eles mesmos, um castigo como esse. Modibo tinha certeza que entre as mãos que seguraram e atiraram as pedras havia muitas cujas cabeças a que pertenciam não concordavam com o apedrejamento, mas tinham que mostrar que eram fiéis: Fidelidade de conveniência, frustração de não poder reclamar sem castigo e sem perder o apoio da comunidade: Os líderes mandavam, impunham, mesmo contra o Corão, mas se julgavam sempre certos. Isto acontecera no Norte do Mali tomado por extremistas do Islã, ligados ao grupo Al-Qaeda, ao qual pertencera Osama Bin Laden. Este grupo destrói a história e os monumentos do Mali. Destrói a fé de seus habitantes. Destrói lares e vidas. O casal, como Modibo sabia, não fazia restrições a ter filhos. Ela provavelmente estaria grávida. Os bons se vão no Mali, gente ruim fica. Gente ruim não deveria herdar o mundo, mas normalmente dominam pela força, procriam e têm descendência. Gente fiel perde a vontade de construir uma nação, em meio tão hostil.


Modibo não sabia onde colocar este pacote de lembranças: Se na sua fidelidade ao Corão, ao governo, a seus pais, à humanidade, ou ao povo Mali. Resolveu colocá-lo em um espaço especial, como num corredor onde busca lembranças sempre que precisa comparar alguma coisa, algum fato, julgar com justiça, abre a porta correspondente e entra. Guardaria juntamente com as lembranças de seus amigos tuaregues, alguns deles - do lado errado -a serviço dos extremistas da Jihad.

Modibo tinha um computador escondido, configurado na Costa do Marfim e uma máquina fotográfica digital. Conhecia a Internet e a Primavera Árabe. Só precisava recarregar as baterias de seu computador portátil e as pilhas recarregáveis da máquina fotográfica. Juntou todos os seus pacotes empilhados ao longo dos anos, seu camelo, e partiu para o campo de batalha. Daria a conhecer ao mundo o que se passava no Mali, o que faziam com sua gente, e como é falha a justiça dos homens que falam em nome de seus deuses e profetas. São esses mesmos os que menos condições têm de ouvi-los. Modibo Keita levaria ao mundo a palavra da verdade.

Rui Rodrigues

  

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