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quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Carta aos Magriços.

Carta aos Magriços.



Consta em “Os lusíadas” de Camões, a história dos “doze de Inglaterra”, quando os segundos e terceiros filhos se transformavam em cavaleiros andantes que percorriam o mundo defendendo os indefesos, os desamparados, e aproveitando para ganhar algum dinheiro que os pudesse manter. Não sendo o primeiro filho, e para manter a riqueza da família, o primeiro filho a nascer era sempre o único herdeiro. É uma verdade histórica, não lenda, que marca uma grande diferença de comportamento para os dias de hoje. O que impressiona é que Dom Quijote de La Mancha era um cavaleiro andante imaginário de Miguel de Cervantes, e ficou famoso. Não era real. Álvaro Gonçalves Coutinho foi um cavaleiro andante real, mas não ficou tão famoso. Ele e mais onze se dirigiram a Inglaterra a pedido indireto de 12 damas inglesas que foram chamadas de feias e que não houve cavaleiro inglês que as defendesse. Lá foram os doze cavaleiros para Inglaterra, todos de navio menos um, o magriço (Álvaro Gonçalves Coutinho) que foi a cavalo para conhecer “novas águas, novas gentes e novas manhas” até o canal da Mancha, ali por Calais na França, e de lá pegou um barco. É até bem possível que Miguel de Cervantes tenha idealizado seu cavaleiro andante Dom Quijote na história real do Magriço, já que este passou pela Mancha e Quijote seria de lá mesmo se tivesse existido. Podemos imaginar uma das missivas, por exemplo, a enviada a Dom Álvaro, o Magriço, pela dama feia que queria ser considerada como bonita, com o seguinte teor:
Ao Mui Nobre D. Álvaro Gonçalves Coutinho, da brava terra de Penedono, excelsa terra portuguesa de nosso senhor, filho de valentes e piedosos nobres, defensor da honra de damas, doentes e indefesos, no ano de 1381 de meu amado rei Eduardo III e de vosso amado rei D.João I. Que assim conste, por minha fé.
Nobre cavaleiro,
Eis que me encontro, juntamente com mais onze damas inglesas numa situação inusitada para a qual não temos quem nos defenda, sentindo-nos humilhadas a tal ponto que nossa vergonha nos impede de sair às ruas, fazer nosso footing nas praças, ir a templos, namorar, casar, termos filhos. Algumas de nós já perderam pretendentes. Nossos desafetos são doze cavaleiros ingleses que publicamente nos chamaram de feias, afetando assim, sobremaneira, nossa honra e comprometendo nosso futuro.
Não tendo encontrado nem parentes nem nobres amigos que nos defendam, estamos enviando cartas de igual teor aos nobres amigos de vossa nobreza, por termos tido notícias de vossos fortes braços, afiadas espadas e pontudas lanças, montando belos e inteligentes cavalos de raça lusitana, que, em saindo vencedores da lide, sereis beneficiados com generoso e condizente dote.
Sua antecipada e desde já agradecida por protegida,
Lady Mary Anne Sotheby, baroness of Kent




E lá se foram os 12 cavaleiros: O Magriço, Dom Álvaro Vaz de Almada, João Fernandes Pacheco, Lopo Fernandes Pacheco, Álvaro Mendes Cerveira, Rui Mendes Cerveira, João Pereira da Cunha Agostim, Soeiro da Costa, Luis Gonçalves Malafaia, Martin Lopes de Azevedo, Pedro Homem da Costa, Dom Rui Gomes da Silva, Vasco Anes da Costa. No dia da grande lide, as trombetas tocando, e o Magriço ainda não havia chegado, a dama já vestida de preto, em luto, porque não teria defensor. O Magriço despontou no ultimo minuto, os doze de Inglaterra ganharam o torneio, foram condecorados pelo Duque de Lancaster, e voltaram ricos para Portugal, cobertos de fama.   
Nos dias de hoje, numa situação semelhante, imaginável, numa era plena de facilidades nas comunicações, nenhuma mulher pediria que a defendessem só porque a chamassem de “feia”. Até as brigas entre tribos de bairro, famosas nos anos 60 acabaram. Agora há guerras entre grupos de traficantes que disputam pontos de venda de drogas. Os padrões de honra também mudaram muito, e agora, na era moderna, basta olhar meio interessado para os dotes físicos de uma mulher desinteressada que se pode ser indiciado por assédio sexual. Com duas boas testemunhas, pode até provar-se que um cego tenha feito assédio só no olhar, assim como podiam provar que alguém que tivesse feito vasectomia era o pai de seu filho, isto até uma década atrás, antes dos testes generalizados de DNA. Aliás, já nem se fala tanto, ou fala-se quase nada, em honra. Honra ao mérito só em medalhas e numa ou outra festividade para “inglês ver”, português ver, brasileiro ver, o mundo ver.

Mas de que honra  se poderia falar numa época em que os nobres já não mandam nem fazem política, os políticos não têm nobreza, os proletários ascendem ao poder e pensam que governar é agir como a nobreza do passado, os juízes são arbitrários, os burgueses são de classe inferior e há políticos que os detestam mas lhes cobram altos impostos para lhes pagarem altos salários, e de modo geral nada é o que parece e o que parece não é?
E estando assim tudo posto e explicado, como de fato parece ser, até ao menos preparado para entender, admiremo-nos com o passado de glórias de uma humanidade que tanto quis mudar, que mudou demais e agora se encontra sem cavaleiros que a defendam. Mas que moral podemos ter para criticar, nós que construímos o mundo e assim o construímos dia a dia, lei a lei, governo a governo? 



Portanto, som na caixa, pau no bumbo, ferrinho no triângulo, e toca a desfilar no próximo carnaval, cheios de animação, bom humor e gelada cerveja.

® Rui Rodrigues

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