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quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Amanhã não valerá a pena lembrar-me ...

Amanhã não valerá a pena lembrar-me ...

Não costumo sair muito de casa. Minha vida foi de muito trabalho, sacrifício, viagens constantes, tensões, angústias no trabalho. A paz e a tranqüilidade são hoje o meu reino, talvez como uma forma de compensação. Ontem saí como de costume em início de mês para fazer as “minhas coisas” em Cabo Frio, resolver minhas preocupações mensais. Saí bem disposto, tranqüilo, em dia quente, esperando a todo o momento receber notícia de que, no Congresso Nacional, a nova lei isentando a presidência de suas responsabilidades para com a nação, não fosse aprovada. Fui primeiro à sede da Ampla, a concessionária de energia elétrica, que antigamente fazia muita propaganda sobre suas “qualidades”, como se fosse uma mãe genérica da população cabo-friense. Madrasta seria, que de mãe nunca teve nada e podemos provar. Fui lá para apanhar uma segunda via da conta porque, apesar de o relógio se situar no muro do prédio, a escassos quatro passos da caixinha de correio, quem faz a medição não tem a paciência nem cumpre o dever de colocar o papel da conta na caixa. Deixa-o preso em interstícios do relógio, à mercê de chuvas, ventos, e cachorros de duas pernas que os jogam ao vento só pelo prazer. A Ampla não tinha fila para idosos nesse dia, e em outros dias também.


Depois fui à VIVO, apanhar segunda via da conta de meu celular. Os correios não entregam correspondência a domicílio onde vivo, apesar de termos um CEP. Conseguiram convencer a associação de moradores – não os moradores – que entregariam correio apenas na portaria do loteamento. A portaria só existe para coibir a desova de veículos roubados e ladrões de residências. Quando cheguei á imponente sede da Vivo, pedi duas caipirinhas. O balcão parece de bar, e o sistema estava “lento”. Ainda perguntei se era o sistema ou o sinal da Vivo que estava lento, porque até meu telefone celular só funciona fora da casa, em algum lugar da rua que não é sempre o mesmo: O sinal depende de milimétricos desvios da torre de repetição de sinal. Depois de meia hora, o sinal da vivo voltou. O sistema nunca saiu do ar, porque parte dos computadores estava sendo utilizada por funcionários que certamente não estavam jogando joguinhos do Windows.


Como disse, acordei bem disposto. Depois da visita á Vivo fui ao banco receber o meu salário bolsa-aposentado. Uma ninharia deflacionada a cada ano, a cada mês, em meio a inflação desalmada e corrupção por todos os cantos, lados, ângulos e superfícies desta minha nação, enchendo o volume de minha indignação. Com o bolso quente, comprei meu presentinho bolsa-presente para minha netinha. Uma dádiva dos céus que comprei pela metade do preço, por pura sorte numa loja às moscas no comércio natalino de Cabo Frio. Depois comprei um novo copo para liquidificador. Uma das pás metálicas do meu quebrara. Este é um ritual que tenho que fazer uma vez por ano, porque nossa indústria chinesa produz peças que quebram sem avisar, sempre, para que tenhamos que comprar duas, três vezes a mesma peça, como que uma ajuda para a manutenção da incompetência, da falta de qualidade, da degradação industrial nacional chinesa.


Foi então que o vi. Estava lá, sentado na soleira de uma porta, quase na esquina da avenida, cabeça baixa. Num breve instante em que a levantou, vi-lhe a barba não cuidada em rosto de idade bem avançada, os olhos miúdos de desamparado, as roupas surradas. Pensei que estivesse bêbado ou sofresse de Alzheimer, porque seu corpo se balançava levemente. Desviei meu caminho e passei-lhe a um passo de distância, olhou-me e não pediu nada. Tentou levantar-se, e com visível esforço usou a parede como apoio. Estava cansando e voltou a sentar-se na soleira da porta ao lado. Então tirei uma nota de vinte reais da minha mochila e a empalmei para que ninguém visse o que se passaria a seguir. Dirigi-me a ele e disse-lhe:
- Bom dia... Quer apertar a minha mão?
- Porquê? Porquê? Por que iria apertar a sua mão? – Seu olhar era de inquirição desafiadora de pessoa à qual tivessem agredido sua inteligência.  Entendi... Quantas pessoas passavam por dia em sua frente, e quantas lhe pediam para apertar a sua mão mesmo sendo mês natalino? Então virei a mão e deixei que ele visse a nota. Seu sorriso se abriu e me apertou a mão. Não me lembro se me agradeceu ou não, porque não tem a mínima importância. Deixei-lhe um sorriso, estou ainda com o sorriso dele bem guardado.


A caminho do supermercado sentei num murinho do jardim para ligar para minha filha. Ali o sinal da Vivo funcionava bem. Falei com ela por uns minutos. Depois segui caminho para o supermercado para assistir a um show mensal: O Show da subida de preços. É fenomenal. Principalmente no Extra aonde vou quase que obrigatoriamente por questões de logística. Dali pego um táxi e volto para casa um pouco mais pobre que no mês anterior.  Se não fosse por meu trabalho obrigatório pós-aposentadoria, morreria de fome, sem serviços de saúde que me cuidem, talvez vítima da descontrolada violência, morto por bandido mal educado por deficiente educação. Preocupa-me que tenha que trabalha depois de chegar aos noventa anos, com um salário depreciado que beire o valor de um sanduíche por mês.

Que mundo construímos e que vontade temos de mudá-lo?


® Rui Rodrigues

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