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domingo, 27 de setembro de 2015

O velho das águas.


Não se pode fugir do silêncio do nada. É preciso ir ao seu encontro, aninhar-se na escuridão, escutar e ver com os ouvidos e os olhos da alma. Então o velho procurou nos livros que leu. Todos os livros são sagrados, porque sua origem é sagrada. Não fez Deus o homem – e a mulher – á sua imagem? E não são estes que escreveram os livros? E o velho assim fez. Cercou-se do silêncio, abriu todos os livros que tinha lido e deles juntou algumas idéias porque o todo lhe é impossível e a ninguém possível, senão seria Deus. E entendeu ouviu e viu uma parte do todo que define a totalidade. Já era alguma coisa. E viu um tímido quanta de luz correr célere pelo nada e era só o começo. Precisava de luz.   

1.  Do Gênesis


Primeiro viu o animal, e quando chegou ao fim, lá estava o animal evoluído agora quase imberbe, vestido, refinado, com alguma educação. O animal agora tinha mais conhecimento, andava em duas pernas e não em quatro patas e podia até corrigir a obra de Deus, e o velho se perguntou se alguma vez existira esse Deus. Porque corrigir algo neste mundo ou permitir que o façam, se Deus é Deus e tudo que fez foi definitivo e perfeito como os astros e as coisas e corpos que vemos? Não houvera tantos deuses, todos diferentes, alguns parecidos entre si e uns poucos quase gêmeos, um que se divide em três e ressuscitou? Onde andará esse, que para desaparecer, melhor não tivesse ressuscitado, que não se pode ser Deus apenas naquele tempo quando as cidades ainda floresciam. E se perguntou porque acreditavam os fiéis, e a resposta foi “a fé!”. Então se lembrou que por fé tinham afirmado muitas coisas. Afirmaram que a Terra era como uma bolacha sustentada por tartarugas, que o Sol girava em torno da Terra, e continuam afirmando porque a fé tem que ser cega. E surda, mas não muda. A fé tem que ser propagada. Porque propagam a fé não importa, mas o velho se perguntou porque acreditam “por fé”, e porque crêem se não por tolice, que saber não sabem de nada, nem uns nem outros. Os que sabem não acreditam, não porque não tenham fé, mas porque não há comprovação e são muitos os deuses que se entendem por este mundo, cada um como cada qual o interpreta e teriam que escolher um, porque não pode haver dois. Qual escolher? O mais forte, o mais inteligente, o mais bondoso, qual tem todos e os melhores predicados? Então proíbem os livros que falam de outros deuses? Acaso é tão fraca a fé? Onde o homem – e a mulher – se perderam então, se aquilo em que tinham fé se desdobrou em erros?


2.  A perdição.    


Olhando mais ao fundo da escuridão, o velho viu o nascimento da Terra, ígnea, o choque de um asteróide, o nascimento da Lua, e viu que por bom tempo o caos reinou sobre a Terra até que o homem se fizesse. Mas agora já conhecia um pouco do homem e as trevas não eram tão escuras. E já não via um homem e uma mulher e viu uma porção, depois uma tribo, muitas tribos, nações, e, desde uma porção até uma nação, havia obediência. Obediência ao mais forte primeiro, depois ao mais forte de justiça imediata e ao mais forte na fé do além de justiça a qualquer tempo, que já eram dois. Este fazia justiça com raios, inundações, vulcões, tornados, terras que desmoronavam, secas, com feras e por vezes com doenças terríveis das quais poucos se salvavam, a maioria morria.E isso era de sua intermediação com Deus. Então o velho sentiu o medo. A existir Deus, nele havia bipolaridade. Não tinha Deus se arrependido e afogado toda a humanidade menos a de uma arca com todos os animais? Porque razão não se separaram os peixes? Não seria justo que a humanidade pecadora tivesse sido exterminada de outra forma – e não pela água - para que todos os animais, incluindo os marinhos, tivessem que ser salvos? Não, não. O velho não estava questionando Deus, que nem sabia qual o verdadeiro de tantos que eram e são. O que ele questionava era a lógica, assim como a da bolacha Terra sustentada por tartarugas, em busca da perfeição de Deus. Não tem Deus que ser perfeito? Mas se é perfeito, porque existe a evolução? Então o velho pensou que a evolução é obra de Deus. E se tudo evolui, os livros têm que ser revistos para que reflitam a Verdade: Deus não fez. Deus mandou suas leis fazerem e desapareceu ou se esconde em outras águas para lá das que se vêem. Pois que a “verdade” é uma atribuição divina. Só um Deus sabe toda a verdade e é verdadeiro, e a natureza do universo se corrige segundo as leis da evolução. Mas isto não fazia sentido para o velho. Onde o homem e a mulher se tinham perdido? No Dilúvio? Não. Foi depois. Isso ele podia saber, porque foi muito mais tarde, depois que tudo parecia imutável, que as nações se encheram de humanidade. O homem se perdeu no medo e na ambição, logo que foram largados os machados de pedra que todos tinham, e se criaram os exércitos que dominavam pelos metais, pela pólvora, pelo medo, por conta da ambição. Deus não é o Senhor dos Exércitos. Isso o velho tinha percebido, porque está na história que não importa qual o Deus, exércitos sempre perdem pelo tempo. E o velho viu que se fez mais luz nas trevas, e já ouvia sons desde os do vento aos dos exércitos. Nas escolas não eram todos que aprendiam, que se fossem, quem faria o trabalho mais vil? Então não se pode ter um mundo só de pobres nem só de ricos, nem só de ignorantes, nem só de cultos. Não faria sentido. E o velho entendeu que a política com os exércitos fazem uma associação letal. A perdição veio antes de terem feito as primeiras moedas. Então as moedas já podiam ser inventadas porque a humanidade já estava quase domada a caminho da perdição.

3.  A quinta água.



E Deus criara as águas e as separou, e eram três, uma superior leve que era o ar, outra mais embaixo e mais pesada que era a água, e a terceira era a Terra, a mais pesada de todas. Aos poucos a quarta água apareceu em todo o seu tranqüilizante esplendor verde. E logo depois a quinta água. E o velho viu bem quando aquilo que era apenas homem e mulher passou a nações, e já perto do fim, se transformou num mar de carne ávido por conhecimento, comida, roupas, saúde, casa e moedas. Não tinha Deus então construído uma Terra com a quantidade certa de todas as águas onde já se podia voar, navegar e transitar? E quanto mais o mar de carne precisava comer, mais se deteriorava o mar verde vegetal e se substituía por vegetais ralos, mais se poluía a água das águas, e a terra evoluiu mais uma vez, mas não por si. Foi porque a mudaram e o velho entendeu. Fazia as contas, mas o balanço não fechava, porque quanto mais se criavam condições, mais o mar de carne aumentava, e sobrevinha a fome, não havia comida para todos, nem saúde, bem segurança, e toda a civilização que haviam construído estava ameaçada de ruína, porque as fronteiras se romperam, e de onde as condições eram piores, vieram em ondas para dividir o que tinham por muitos mais, ou desbastar ainda mais as águas verdes, as águas do mar, poluir o ar, para produzir mais alimento. Assim como um buraco, do qual quanta mais terra se tira, maior fica. Essas nações, das que viviam melhor, entenderam a ciência e a usaram. Tiveram menos crias, desenvolveram a tecnologia para produzir mais com menos gente. Sentiu o velho que era uma nova era das trevas, um retrocesso. À sua volta, o mar de carne crescia sem ter o que comer, onde trabalhar, o que produzir. Pensou em sair do silêncio do nada, que já não era tanto, mas não o fez. Quem o ouviria numa época em que já não havia profetas para convencer pela fé, e os que sabiam de ciência não podiam vencer os que se apoiavam nos exércitos para suportar sua ambição?


Então o velho enrijeceu os músculos, levantou-se e ficou despreocupado. Não podiam culpá-lo por não poder lutar contra exércitos, contra a ambição, contra o medo.Um dia todas as águas se juntariam, e seria a volta do caos, em meio de troares horrendos, calor, frio, inundações, terremotos, vulcões, e muitos esqueletos secos, expostos ás areias trazidas pelos ventos. E talvez não sobrasse nem um homem e nem uma mulher.

4.  A profecia.


Não eram os religiosos que expunham os bem sucedidos aos outros e entre aqueles se faziam acolher, para dizerem: Eis que Deus os ajudou e prosperaram? Quantos entre milhares, milhões, bilhões prosperaram? Pois que não fizeram as contas, e por não entenderem, quiseram prosperar como se fosse fácil a Deus que lhes seria fiel apenas pela fé. Deles viviam os imediatistas, ambiciosos senhores dos exércitos. Antes tiravam a vida, depois as moedas. Agora não precisam tirar-lhes a vida, porque basta tirar-lhes as moedas. A mesma fé entre todas as religiões, os mesmos templos em que mudava a arquitetura e o Deus. Então mostraram doentes que disseram estar curados e lhes disseram: Dá o teu testemunho. E logo apareceram tantos testemunhos, que por fé se convenceram os outros que era melhor pagar aos dos templos do que aos médicos. Da mesa tiravam o que comer para se vestirem o melhor que podiam. E tiravam eles da educação e de tudo o que precisavam para assistir a tocadores de instrumentos, ir a bailes, pagar adereços e pinturas, alegria, alegria, alegria. O sofrimento advinha no trabalho mesmo quando não lhes era disponibilizado. E drogas, pelo desânimo de seguir lutando. De lutar contra um mar de carne que parece ter o que eles não têm, que se locomovem em máquinas que poluem, consumindo produtos que poluem e desbastam e destroem todas as águas e o velho viu a luz que se fez num estalo, do nada... O mar de carne teria que regredir, deixar as águas se limparem e se voltarem a espalhar pela Terra. E se o mar de carne não o fizesse, a natureza, que não conhece Deus, o faria. Então disse a outro velho: Vai e conta-lhes! Que se preparem, porque a cada dia a vida lhes será mais difícil se não se prepararam para enfrentar as dificuldades. Que não deixem para Deus a tarefa de os salvar que nem exércitos salvou antes. Eles, os que mandam, sabiam e não o fizeram. Se perguntarem se ainda há tempo, diz-lhes que na dúvida, o haverá, com soluções para hoje, que quanto mais adiarem o amanhã, mais impossível parecerá e será. Boas palavras de conforto não resolvem. O que resolve é a crítica nua dura e crua.


E o velho se recolheu á caverna não se sabe por quanto tempo. Mas não durará até que as águas se voltem a unir: A natureza que mata para que outros possam viver, se equivocou. Sempre nasceram mais do que os que morrem. E a quinta água, a da carne, herdou a Terra. Herdou, mas não cabe toda. Herdou demasiado por ser imediatista, ambiciosa, medrosa, e se perder na fé. “Há que cuidar preferencialmente deste mundo”, disse o velho, do lado de lá, dos fundos da caverna.


® Rui Rodrigues.   

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