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sábado, 13 de agosto de 2016

A longa viagem

1-A caminho de algum lugar
dezembro de 2050.


Lá fora a escuridão era completa em todas as direções apenas salpicada por minúsculos pontos de luz, uns maiores outros menores, uns mais brilhantes outros menos. O que quer que pudesse olhar pelas escotilhas(apenas havia duas) teria a sensação de   estar dentro de um compartimento parado, mas movia-se a 100.000 quilômetros a cada segundo, um terço da velocidade da luz. Nenhum desses pontos brilhantes parecia mover-se em relação aos outros. Não havia nenhuma referência para se sentir a velocidade, assim como quando se viaja de trem e se veem as árvores passar muito rapidamente pelas janelas. A sensação de estar parado era total. O interior da nave era muito pequeno, e não se via ninguém. Havia algumas minúsculas lâmpadas de LED que piscavam em alguns equipamentos, mas não havia ninguém para consultá-los. O espaço no interior da pequena nave era ocupado por equipamentos e depósitos. Não se via uma cadeira, um traje, um leito destinado a um ser humano. Aparentemente a nave não era habitada. Olhos mais atentos porém, perceberiam uma câmara circular no topo da cabine, e dois braços mecânicos disfarçados nas paredes laterais da nave, um de cada lado. Quem comandaria a nave? E porque deveria ser pilotada por alguém? Na verdade nunca se falou dessa nave, ninguém assistiu a seu lançamento ao espaço, nenhuma nação reclamou sua existência. Havia um som vindo de um equipamento especial que transmitia em ondas de rádio o conteúdo de um CD em várias línguas da Terra, e que se fazia ouvir também no interior daquela cápsula, fundos musicais dos países de origem dessas línguas. Numa pequena tela apareciam imagens de coisas da Terra, gente, animais, plantas, o fundo do mar, o planeta girando no espaço em volta do Sol, com sua acompanhante inseparável, a Lua. A nave destinava-se a ser percebida, encontrada, numa imensidão aparentemente desértica de vida. Os olhos humanos servem apenas para ver o necessário imediato. Mas a câmara interna, de 360 gaus, presa no teto, de vez em quando mexia-se. Uma ou outra lâmpada de LED acendia-se. 

2- Despertar de rotina
   
  
De repente acendeu-se tudo na cabine… Alguém chamava a nave em bom português do Brasil, como se houvesse algo vivo na nave.

-Alô missão Boitatá, aqui base do Inferno.... Bom dia, pessoal. Hora de acordar! 
-Alô missão Boitatá, aqui base do Inferno.... Bom dia, pessoal. Hora de acordar! Respondam...
Ouviram-se sons internos na nave, o braço mecânico da direita girou e ligou chaves manuais, o braço da esquerda fez o mesmo, apertou botões, acendeu lâmpadas, iluminou os painéis, o  olho mágico de 360 graus girou e girou e girou, mas não se via ninguém na nave.
- Aqui, missão Boitatá, alô Terra!... Têm que nos dar um tempo para acordar e responder. Por aqui tudo bem. Adiante... 
Bom dia, pessoal. Hora de acordar!... Deem-nos as coordenadas. Se tudo estiver bem, devem estar a meio caminho do destino. Saíram daqui da base da Barreira do Inferno há exatamente três anos viajando a um terço da velocidade da luz. Quando saíram daqui o alvo estava a dois anos-luz. Agora falta um ano-luz em distância a percorrer, ou seja mais três anos terrestres. Vão chegar lá com cérebro mais jovem ainda... Contem-nos como se sentem.

- As coordenadas conferem com as vossas. Estamos na metade do caminho. Cheguei a pensar, quando entrei em fase de "desligado", que o programa não iria funcionar, mas vocês não imaginam o meu prazer em sentir que estou vivo. Creio que Irene também... Irene?

- Ah... Olá... Fala a Irene. Sinto-me muito bem. Vocês nos limparam algumas memórias, para não sofrermos de saudades, certo? 
- Certo Irene!... Foi o combinado antes da partida. Vale o mesmo  para você, Carlos. Tudo o que quer que tenha sido bloqueado, quero que saibam, vai tudo bem por aqui. Então aproveitem o tempo, conversem entre vocês, porque em cerca de 6 horas serão desligados novamente, e voltarão a ser religados dentro de três anos terrestres quando estiverem chegando ao destino.
- Carlos falando... Digam-nos... Se não tivéssemos aceite o vosso convite  teríamos morrido, certo?
- Certo, Carlos e Irene... Quando chegarem ao destino terão que procurar urgentemente novas fontes de açúcar e oxigênio para serem eternos. 
- Entendido, Base do Inferno. Certo Irene?
- Entendido! Câmbio e desligamos!
Mas não se via ninguém na nave.

2- Conversa de casal antes de dormir




Na nave viu-se duas pequenas caixas de vidro que se abriram automaticamente no painel. Continham dois cérebros humanos ligados a um computador através de chips . Havia um cabo ligando os dois pelo cerebelo e estavam identificados como Carlos e Irene. Apenas os cérebros, nada mais. O cranio era de vidro transparente, de plexiglas, altamente resistente. Os cabos os ligavam a dois exo-esqueletos, como se fossem dois Transformers unidos para constituir uma nave. Estavam unidos pelo cérebro, pensavam em conjunto, sentiam em conjunto, raciocinavam em conjunto. Os dois cérebros unidos eram a mais potente máquina de pensar do Universo.

- Carlos... 
- Sim?
- Fizemos bem. Estávamos desenganados pelos médicos e ganhamos uma oportunidade de continuar vivendo.
- Penso o mesmo. O prazer de transar está todo no cérebro... Vamos dar uma? 
- Só se for agora... 

Quando estavam desenganados pelos médicos, tinham cerca de 70 anos. Agora comportavam-se como crianças de 18 anos, com uma vida eterna pela frente, e apenas dois pequenos cérebros para alimentar com uns poucos centimetros cúbicos diários de oxigênio, e umas gotas de açúcar... 

Ouviram-se risadinhas no interior da nave e universo afora... Na base do Inferno a equipe sorriu. Através dos sensores ligados ao centro de informações na base, sabiam exatamente o que que cada um via. E as fotos na parede mostravam como eles eram em sua vida normal. O cérebro é que constrói as imagens e os "perfis" que "julgamos pensar" das pessoas. O amor e o desamor constroem tudo, mas não é no coração. Do arquivo de cheiros e sons retiraram os de copos de cristal, de uma garrafa perdendo a rolha para um saca-rolhas, e do cheiro e sabor de um Chateau Lafite Rotschild 1787, como arrematado na Christie`s em Londres, em dezembro de 1985, 156.450 dólares  por uma garrafa apenas. Com a implantacao de chips, a economia mundial havia mudado. Podia ter-se de tudo sem comprar nada. Quase tudo...


Resolveram não se desligar. Ficariam vendo filmes, conversando, cozinhando, transando, sem ter que cuidar do regime alimentar, sem ter que pagar personal Training, sem dores nem preocupaçõesNão faltava o que fazer.    


® Rui Rodrigues 

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