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quarta-feira, 26 de novembro de 2014

O Jogo de ser Humano

O Jogo de ser Humano



Crianças de dezenas de milhares de anos atrás nas pradarias do Norte da América e Europa não assistiam a jogos de futebol em enormes estádios iluminados. Divertiam-se vendo de longe a luta de bisões, de ursos, os animais da pradaria, pela posse de suas fêmeas. Lutas mortais. Também eles brigavam entre si, normalmente por defeitos expostos de moralidade. Cada tribo tinha um conselho de anciãos para julgar os casos e não raro os culpados eram punidos com a morte. Em tempos de paz faziam jogos para se divertirem e a cada jogo deveria haver um vencedor. Não era diferente de seus congêneres do sul do Continente americano e nem sabiam da existência deles. Também não sabiam da existência de um mar imenso que suas pirogas feitas de varas de madeira, cobertas com peles de animais, jamais poderiam atravessar, e muito menos sabiam que havia outras terras, para lá do primeiro mar, onde pessoas e crianças tinham exatamente estes mesmos hábitos, de observar os animais, caçá-los, jogar buscando a vitória, punir os culpados por atos ilícitos segundo sua moralidade. E muito menos sabiam que passado o primeiro mar, e o outro continente, havia mais um mar que, atravessado, os levaria de volta a casa, às suas pradarias. Um longo e extenso caminho por mar e terra, onde encontrariam gentes semelhantes, vestidos de formas diferentes, usando utensílios semelhantes, hábitos parecidos, mas onde todos jogavam, com maior ou menor seriedade, e aplicavam o jogo da morte como punição aos apanhados em erros inadmissíveis.


Perceberiam que a vida é um jogo? Não se pode afirmar. Os homens das naus e caravelas que um dia chegaram lá aos milhares, não tinham feito o jogo da vida para atravessar esses mares? Certamente que sim. Sabiam dos perigos de atravessar os mares sem fim, onde havia monstros terríveis, ventos impiedosos, tempestades mortais, mas se conseguissem sobreviver poderiam viver o resto de suas vidas sem trabalhar, vivendo dos rendimentos auferidos, proporcionais aos riscos enfrentados. A vida tinha um valor que se estendia da riqueza à morte em todos os seus melhores e piores tons. A vida um jogo e um prêmio: Riqueza para os vencedores, a morte para os perdedores. Não poderia ser diferente?


Esses mares já foram atravessados. As naus e caravelas modo geral chegaram sempre a bom porto, os monstros foram vencidos, as tempestades aplacadas, os ventos dominados. O jogo não. Por aquelas épocas, desde dezenas de milhares de anos atrás, passando pelas centenas de anos em que naus e caravelas atravessaram os oceanos de água ou caravanas atravessaram os de areia, até nossos dias recentes de um par de dezenas de anos, as nações da terra não eram tão densamente povoadas. Os aspectos morais do comportamento humano eram resolvidos por conselhos de anciãos e havia pequenos exércitos de homens armados para garantir a ordem, mas recentemente algo mudou o equilíbrio no jogo da vida: As nações da Terra tornaram-se super povoadas, bisões e ursos e animais das pradarias quase foram extintos, e em seu lugar surgiram enormes plantações de alimentos para sustentar tão tremendas quantidades de roedores humanos. Chegamos a um ponto de necessitarmos abrir mão de nossas noções de nojo e passarmos a roer insetos devidamente apresentados com arte em tragáveis pratos decorados. Esse senso humano de jogar buscando recompensa que tanto pode ser premiada com a riqueza ou alimentos, ou castigada com a morte, perdura sempre. Esse jogo sempre será jogado, ainda que seja decorado e apresentado com roupas interessantes e adequadas, sorrisos, arautos, shows de artistas ou armas que se inventaram para mais facilmente se garantir a vitória nesse jogo da vida. Desenvolveram a ciência para poderem descobrir novas armas mais eficientes e potentes, e para curar de doenças as populações necessárias para usarem essas armas. O jogo da vida foi-se tornando cada vez mais letal, porém mais saudável aos corpos ansiosos por jogar esse jogo. Crianças que hoje não têm a oportunidade de ver bisões e ursos, ou leões e hienas disputarem seus jogos pela vida, aprendem a jogar em competições infantis esportivas ou em simples jogos de cabra-cega, relativamente fáceis, até os mais complicados de futebol, artes marciais viagens espaciais, jogos de guerra. A diversão do dia a dia é fingir que não se tratam de jogos de vida, e apregoar a paz, a bondade, o seguimento de leis morais ou religiosas. Os fiéis às leis e á religião têm suas compensações morais, dormem relativamente tranqüilos, muitas vezes com fome, com falta de instrução, de serviços públicos, mas sem riquezas mensuráveis. Os que fazem as leis e as fazem cumprir, dormem relativamente tranqüilos porque estão, também relativamente, protegidos pelas leis e pelos exércitos com as armas inventadas sob a égide do jogo da vida. Comunidades unidas são mais fortes. O que as une? Traços fisiológicos, aspectos legais e religiosos, o medo de jogar o jogo da vida, a vontade de vencê-lo, uma pintura multicolorida de outros fatores, mas sempre o jogo da vida. O maior problema que parece quebrar este sistema até agora relativamente controlável foi o crescimento populacional.


As planícies foram invadidas, as florestas derrubadas, os mares enredados por redes mortais, extraiu-se da natureza o que se podia até se sentir que essa natureza estava mais que morrendo, desaparecendo. Nenhum sistema político – o que é evidente porque se trata de um jogo – conseguiu deter as tendências do crescimento populacional e a ocupação de terras vitais, delimitar o uso das redes de pesca.  A cadeia alimentar do planeta transformou-se numa prisão alimentar em cadeias, cada uma com seus predadores. O controle das massas humanas tornou-se assim mais difícil, grupos isolados desafiam as ordens e a Ordem. O jogo exige que se atribuam culpas entre grupos, e para se encontrar culpados, basta descobrir um motivo que pareça justo, mesmo sendo apenas parte do jogo da vida. Se não existe lei para defini-lo, inventa-se uma, dez, cem, alteram-se constituições, compram-se senadores, empresas, porque há dinheiro. Quando o dinheiro é um bem considerado abominável, compram-se os indivíduos com qualquer outro bem do jogo da vida: Cargos, benefícios, cupons, liberdades, serviços, um pouco de açúcar, sal e farinha, um ponto de táxi, liberdade para fabricar fritar e vender seus pastéis no meio da rua pagando imposto ao estado que se diz dono dos pastéis.


O limite do jogo da vida é alcançado quando o indivíduo serve o estado de forma quase que em dedicação integral e com ele divide de forma subalterna e desproporcional a sua própria existência, quando se anula como individualidade. Humanos podem subsistir sem o Estado e sem a religião, mas não podem ser tão numerosos que não se conheçam uns aos outros pelo nome. Em quantidades maiores do que cerca de 100 indivíduos, o estado se faz necessário porque não haveria forças que os segurassem em suas revoltas constantes. O jogo da vida é duro, e das riquezas à morte vai um século ou um segundo na vida de cada um.


Quem manda em instituições, sejam elas religiosas, governamentais, sob qualquer tipo de filosofia moral ou política, está e sempre esteve bem, ao lado das maiores e melhores riquezas disponíveis desde o tempo dos faraós, de Salomão, Nero, e Ciro. Artistas e cientistas sempre tiveram suas regalias desde que agradassem, mas foram sempre os donos de exércitos que ganharam, por tempo mais curto ou extenso, o jogo da vida. Esses donos de exércitos são os governos da Terra, os que movem os peões no tabuleiro do jogo. Uns são reis, outros rainhas, outros fortes e lineares torres, alguns são bispos, e outros se movem como cavalos. A maioria é constituída de peões que têm seus movimentos completamente lentos e limitados a um passo de cada vez, jogando sempre á frente em proteção das peças superiores.  Quem inventou o jogo de xadrez, um dos pequenos, inocentes e divertidos jogos da vida, não gostava de reis porque os fez se moverem a um passo de cada vez como os peões. Deveria gostar muito de rainhas, tal como deveria ser nas cortes reais, reais, onde elas se moviam de forma independente, para qualquer lugar do palácio desde que fosse em linha reta, e é impressionante neste jogo que bispos não se possam esconder nas torres, reis não possam montar cavalos, peões não possam voltar para trás, mas se transformar em rainhas, jamais em reis. O jogo não permite dois reis, e cada rei tem que ter direito a uma outra rainha caso fique viúvo.


Neste jogo da vida tudo é ilusão e poucas as realidades. As ilusões não se vêem... Ficam escondidas, prontas para se tornarem realidades, e num só bote, nos darem o xeque-mate. Se você tem alguma filosofia política, comece a vê-la de forma mais real: Ela se contrapõe a outras filosofias não por que sejam melhores ou piores, que certamente serão, mas porque se trata de opções no jogo da vida onde você será sempre, provavelmente, peão. Você protege os campeões ou os pretendentes a campeões. Uns chamam até de posição aos campeões e de oposição aos pretendentes a campeões. Bateis-lhes palmas, incentivais o jogo. Alguns chamam a este jogo o jogo do poder, mas não é. É o jogo da vida e nós, peões, estamos perdendo-o. Mas lembre-se, a título de consolo e esperança: O jogo termina sempre com a queda do Rei mesmo que a Rainha ainda exista. No jogo de xadrez, claro, porque no jogo da vida, não há fim, nem vencedor perene nem perdedor que não possa vir a vencer. É tudo uma questão de jogo de sorte que pode ser de azar. Ganham-se riquezas ou perde-se a vida. Muitos doam sangue e órgãos do corpo, além de pagarem impostos, doar dízimos, pagarem multas, trabalharem mais de oito horas por dia para sobreviver, fazem doações de caridade, trabalham sem receber em instituições de caridade, dão aulas em escolas por salário irrisório e insuficiente, movidos pela vontade de ajudar o próximo. Somos uma humanidade demasiado boa, mas nos exigem cada vez mais. Nós mesmos, ou a natureza nos encarregaremos de pôr fim a sistemas, a governos, à natureza, mas, sempre, sem deixarmos de jogar o jogo da vida. Rindo ou chorando, acariciando ou rejeitando, ainda que imbuídos dos melhores ou piores sentimentos, tudo faz parte do jogo.

O mundo é naturalmente irrequieto, cada peão servindo as castas superiores (ainda que temporariamente) que se escondem em pompa na retaguarda, fortalecidas por torres, bispos, cavalos. São os reis e rainhas, ela podendo até ter ascendido de peão vencedor, mas rei, com linhagem sem duvidar, só o Rei. Quando perde, tomba. Pelo menos era assim no jogo de xadrez. Pode ser que no futuro tenhamos reis rainhas e rainhas reis, sem mudarmos absolutamente nada. Nada mesmo. E até as cores do jogo de xadrez, preta e branca, não seria necessário serem tão discriminatórias. Bastaria que fossem numeradas de 1 a 16 de um jogador, e de 17 a 32 do outro. Seriam diferenciadas apenas pelos números.


Surreal é vermos um mundo momentaneamente real com fundamentos em irrealidades, sabendo que existem realidades que não vemos nem sentimos, e, mesmo assim, acharmos que tudo é absolutamente real como se fosse eterno. Pior ainda, se acharmos que existe algum laivo de imutabilidade, a qualquer momento, em qualquer coisa deste universo, que não se altere a cada micro fração de segundo. Só não se nota quando estamos juntos, pessoas paisagens e coisas, em modo continuado ao longo de um período de tempo. A cada período se notam diferenças. Basta olhar sem temor, em tom de desafio ao jogo da vida e manter o rei em pé.

® Rui Rodrigues.


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