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domingo, 7 de julho de 2013

Carta para 2024

Carta para 2024



À minha netinha Maya, em 2013.



Oi, Paixão...

Se guardares esta carta num envelope para abrir somente em 2024, terás então 14 para 15 anos. As datas realmente não têm muito sentido. Pode viver-se uma vida maravilhosa em cinco anos e partir contente, e pode viver-se menos bem e a vida durar uma eternidade, mas uma carta guardada por tanto tempo deve merecer ser boa e agradável. Talvez possamos lê-la juntos. Tu para a leres pela primeira vez, e eu para que me lembres o que te escrevi.

Como é meu costume, escrevo-te contos infantis para te distrair em alguns momentos da vida. São contos mais ou menos como sonhos em que se acorda rindo, com vontade de chegar a noite para escutar mais um conto antes de dormir. Mas agora que tens 14 anos e vais ler a carta no dia de teu aniversário, vou contar-te outra historinha para lembrar os velhos tempos.

Era uma vez...

Há muitos... Muitos anos atrás, uma porção de pessoas que se conheceram formando casais. De um desses casais nasceu um ancestral teu, e de mais outro, outro ancestral. No mesmo lugar do mundo, um continente imenso que começa na África, se desvia para a Europa e acaba lá no fim do mundo, no Extremo Oriente. Não conhecemos nenhuma dessas pessoas porque se conheceram num tempo em que não havia Internet nem sequer se sabia se um dia se poderia escrever uma carta. Eram gentes muito antigas. Mas como não amá-las, se foram elas que concorreram ao longo do tempo para que um casal, um dia, descendente de todos esses ancestrais, se encontrassem e te “fizessem” nascer?

Entre esses ancestrais havia gente de África, da Europa, do Médio Oriente, gente que sabia lidar com a neve, com as areias, com as inundações e as secas. Gente que cultivava a vinha, que criava gado, que construía, que administrava, que tocava instrumentos. Mais, muito mais do que minha netinha és filha da humanidade, e mais ainda do que filha da humanidade és filha da natureza.

Cada um tem a sua vida, ao longo da qual mudamos muitas vezes de caminho, umas vezes por opção, outra porque a vida naturalmente “nos empurra” para esses outros caminhos. Mas os teus genes têm a experiência daqueles seres humanos de África, da Europa, da Ásia, e estás em condições de viver a tua vida. Não importa nada, absolutamente nada, como é o nosso corpo. O que importa mesmo é como é o nosso pensar, que sentimentos temos. Aos quinze anos ou já escolheste ou irás ainda escolher os teus rumos. Se não o fizeres por ti, a vida te empurrará o tempo todo, ao sabor do imenso mar dos “outros”. Se quiseres um conselho de um velho avô, escolhe. Será uma opção tua, independentemente de ouvires ou não conselhos. Só decidindo por ti mesma te tornará independente. Sabes porque razão? Se tu não decidires sempre por ti mesma, podes escutar até bons conselhos, mas não sempre. Existem umas leis, as da probabilidade, que decerto agora já conheces, segundo a qual a repetição constante no jogo da vida é praticamente impossível. Um desses conselhos que de boa fé sigas, pode tornar-te a vida muito difícil. E para saberes o que escolher na vida e seguir na vida, tens que saber, conhecer, aprender por ti mesma, adquirir experiência. Dizem que é errando que se aprende. Recomendo-te cuidado. Se aprenderes e prestares atenção à vida, não precisarás errar onde a maioria das pessoas erra, e quem sabe, talvez teus erros sejam sem grande importância. Então, estudar é muito, muito importante. Por mais que não gostes de uma matéria na escola, ou de duas ou três, é nestas que deverás concentrar a tua atenção. Teus professores te ajudarão se te mantiveres interessada em estudar. O conhecimento te faz sentir firme, sabendo o que fazer sem muita hesitação. Não dependerás dos outros que nem sempre estarão interessados em ti. Ou apenas em ti.

Ah... O amor... Deverás estar gostando de alguém. É comum aos 15 anos, mas se não te disseram ainda, deixa que te diga. O amor é um sentimento “esquisito”. É um processo simultaneamente químico e biológico, agindo em nosso cérebro, produto de estímulos naturais. É a nossa natureza, em meio a natureza maior, que nos faz amar na juventude, amar em qualquer idade, mas é na juventude que a falta de experiência nos faz passar por alguns apertos. Por que te digo isto? Porque as pessoas têm a péssima mania de se desiludir quando o processo do amor – aquele tal processo químico - não lhes corre como imaginavam e ficam tristes, produzindo em seus cérebros exatamente aquela enzima contrária ao do amor correspondido, que nos dá alegrias. Então, qual é o raciocínio? De certeza que não irás ficar triste por muito tempo. Isso não é nada bom. Palavra de especialista, tal como todos os que atingem uma idade avançada. E também te digo isto porque não me gostaria que sofresses até chegares a uma idade avançada.

De importante só se te falar da ambição, porque de resto, tu sabes o que fazer, quando fazer e como fazer. É que por ambição cometemos os maiores erros de nossas vidas, até mais do que quaisquer outros, inclusivamente o amor. Se quiseres muito da vida, serás infeliz na mesma proporção, porque a ambição exagerada é amoral e não tem muita ética, e se perdem os amigos que se fazem. Não há ninguém tonto. Mas também, se não tiveres nenhuma ambição, uma roupa, um sanduíche roubado do lixo e uma ponte são tudo o que poderás ter de graça junto com todo o sofrimento que poderás imaginar. Se deres o que tens, ficarás sem nada, talvez com o coração cheio de amor, mas isso não concorre para a tua felicidade. Os dias seguintes serão de vazio, mas ajuda sempre, comedidamente, a quem precisa e merece.

Drogas são o apagar da mente, uma borracha que se passa em nossa consciência, o destruir das realidades, dos amigos, de nós mesmos, e a construção de uma redoma irrespirável cheia de nada, onde nem a linda natureza que nos cerca tem o mínimo sentido. Uma morte viva. Cai fora desde o primeiro instante em que te ofereçam alguma. Nem tenta.

E quando tiveres a minha idade, estarás bem melhor do que nós, que já chegamos lá...

Beijos nesse teu lindo coração.

Vôvô Rui, o “ oi paixão”.


© Rui Rodrigues

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