Pesquisar este blog

sábado, 19 de julho de 2014

O homem que conversou com Deus

O homem que conversou com Deus



Ouviu o estampido e nada mais. Nada ficou do que passara, nem uma esperança de futuro. O que sentia era apenas escuridão, frio, silêncio. Apenas sentia, nada mais, nem uma lembrança sequer, e só uma coisa sentia: Que “ainda” existia embora tivesse perdido algo que não sabia definir. Então uma luz se acendeu e viu um vulto. A luz era tão forte que não lhe permitia ver se algo mais existia além do vulto e da luz. Nem a si mesmo se via nem tinha noção de nada. Era como se existisse sem saber o que era, como era. E ouviu sons perfeitamente entendíveis.

- Não estás entendendo nada do que está acontecendo, não é? (Foi o que ouviu vindo do vulto. Agora via um vulto)
- Não! Tu sabes? (e se deu conta de que podia emitir sons como os do vulto, e podia articular idéias)
- Morreste no mundo em que vivias...
- E o que é morrer?
- Realmente, por tuas perguntas, estás morto e bem morto. Vou ter que te devolver um pouco de vida para que te possas lembrar...
- Ah!... Agora me lembro... Foi tão rápido... Eu estava em pleno assalto à casa junto com meus companheiros quando de repente tudo parou, e veio a escuridão, o silêncio... Foi um tiro, não foi?
- Foi!
- E agora? O que me vai acontecer? Posso voltar a viver?
- Não há como. Regras não se mudam. Regras e leis não se mudam. Já imaginaste o mundo, o universo, funcionar durante uns tempos, depois parar para descanso e voltar a funcionar? A verdade é imutável. Se for verdade, como é, que tudo o que morre morre para sempre, então não há a mínima hipótese de se ressuscitar. O que está feito está feito, e resta o mérito.
- Mas não posso voltar no corpo de uma criancinha recém nascida?
- Não... A criancinha recém nascida terá seus próprios méritos em sua vivência. Tu tiveste o teu.
- Mas nem como uma ave, uma planta, uma vaca...
-Não... A vida é uma oportunidade única. Na verdade, uma dádiva deste Universo.
-Então por que me falas, se o que me espera é a escuridão, o frio, o silêncio? O que me acontece a seguir?
- Nada. Nem terás noção dessas coisas, escuridão, frio, silêncio... É como se nunca tivesses existido para o Universo. Assim como um átomo que desintegra. É transformado em energia e outras partículas, e até pode voltar a ser átomo. Teu corpo, por exemplo, já está sendo transformado até ficarem apenas os ossos e  nem isso sobrará com o passar do tempo. A Terra transforma tudo.
- Mas há algo que não está de acordo... Eu morri e estou falando... E me lembro de toda a minha vida.
- Não há nada de errado. Depois da “morte” física, o cérebro ainda tem energia para ficar vivo por uns dez minutos. Nós estamos conversando nesses dez minutos. Depois te apagas definitivamente.
- Todos os que morrem conversam contigo?
- Claro... Mas só para o s que têm uma noção do que é “Deus”... Cada um conversa com o seu!
- Mas eu era ateu!
- Ninguém é completamente ateu... Só se é ateu como forma de contestação ou revolta contra o mundo no qual se surge e do qual se tem consciência. A grande pergunta “Quem fez tudo isso, o universo, a vida”, só tem resposta credível na ignorância de que só um Deus poderoso o poderia ter feito. E na hora do medo, todos pensam em seu Deus. Quem nunca pensou, pensa numa “força” invisível...
- Então... Tu não existes?
- Como não?... Não estamos aqui conversando? Não vês o meu vulto?
- Vejo... Mas dizes que estamos nos dez minutos em que meu cérebro ainda vive, e que há muitos deuses... Quem é o Rei dos deuses?
- Claro... Depois de completamente morto, com cérebro morto, querias pensar com o quê, se já não tens nem a energia de uma pilha gasta? E quanto ao Rei dos deuses, um só Deus basta para não ter com que se preocupar com traições, guerras... Essas coisas...
- Quer dizer então, que fazendo o bem ou o mal, enquanto vivemos, tanto faz, que o fim será sempre o mesmo, isto é, a morte completa e irreversível?
- Não... Aí não... A morte sim é completa definitiva irreversível... Quanto ao “tanto faz”, é que não... Sociedades mais violentas tornam o mundo mais violento, menos cuidado, leva à deterioração e posterior extinção das sociedades. Sociedades mais educadas, mais pacatas prolongam a vida da espécie e da vida no planeta.  No tempo deste universo, tudo depende do que “já passou”.
- Entendi... Mas de que... me... vale... s a b e r    a go ra   de... tuuuudo... isso?

Ouviu, mas já não conseguiu responder...

- Devias ter pensado...



® Rui Rodrigues

Nenhum comentário:

Postar um comentário