A casa um no lugar dois.
A mesa estava posta, farta e parecia uma catedral gótica estendida, cheia de rendilhados e rococós coloridos prontos pra comer. Os cheiros iam desde a churrasqueira de gado e aves, até os pomares, as vinícolas, as fábricas de perfumes e chocolates. Havia sempre alguém vindo da cozinha com algum prato cheio de algumas coisas gostosas no aspecto, cheirosas. Os mais velhos evitavam beber muito para não ficarem descompassados quando chegasse a hora. Alguém ligou a vitrola e começaram a ouvir-se musicas de paz e alegria. Junto à janela vi um casal com uma criança rebuscando coisas junto aos latões de lixo. Passei pela mesa, roubei um frango inteiro já cortado, e desci para a rua. Era Natal. Depois voltei para casa. Mas cada um tem sua casa e sabe como se é acolhido.
A casa três no lugar um.
Olhou a cidade do alto da colina. Parecia enorme, viva, como se respirasse. Falava com sons de palavras, buzinas de automóveis, pregões, tinha cheiros. Nem tinha certeza se realmente ouvia os sons ou se era apenas uma sugestão, mas era como se os ouvisse, nitidamente, como um troar monótono, grave e abafado de onde sobressaía de vez em quando uma sirene de ambulância ou de policia. A cidade era uma coisa viva vista e sentida daquela distancia. Mas esse era o reino da luz, o reino visível dos vivos. O outro reino era o dos "mortos e ausentes", como os doentes dos hospitais, os dos presídios, os mortos em velório, sua mãe na aldeia, sozinha no interior de Portugal, vivendo do que cultivava, do leite de uma ovelha para fazer queijo, do leite de uma vaca, do pouco dinheiro que ele lhe mandava. Ela mesma dissera que não precisava de dinheiro, e que nunca quisera ter vivido em cidades. Seu pai falecera ano passado. Naquele mundo invisível os natais eram muito tristes. Chorava-se em vez de sorrir, nem que as lágrimas se vertessem olhos adentro. Sua mãe! Não podia trazê-la, não podia ir fazer-lhe companhia, viver com ela. Não sabia de onde lhe vinha aquele sentimento de remorso se não podia fazer nada. Ou poderia? Mas cada um tem sua casa e sabe do que tem remorsos, mesmo a milhares de quilômetros de distancia, tanta água e tanto tempo pelo meio.
Em frente à casa dois no lugar três
Já não existia tal casa, a sua casa. Nem seus pais. Estavam mortos, junto com seus tios, um avô. O rei sírio e seu amigo russo matavam quem estivesse na cidade sem se incomodar com gênero, idade ou crença. Os alemães tinham feito a mesma coisa na guerra civil espanhola, em Guernica.
Depois do terceiro dia de bombardeamento, quase não havia mais alimentos a não ser enlatados e pacotes de bolachas, uma ou outra embalagem de café, mas o pessoal das milicias andavam checando as casas abandonadas, mesmo as que tinham sido destroçadas pelas bombas. Eles tinham cinco e sete anos. Nunca conseguiram entender, nem lhes explicaram direito, de onde vinha todo esse ódio se eram o mesmo povo e apenas pensavam de modo diferente, num mundo de tão raros e escassos reinos. A Síria precisava de uma república, não de um rei que buscava legitimidade num fictício contrato entre Alah e o rei como seu representante. O representante de Alah era Maomé, que se foi depois de deixar o Corão, seu livro de comportamentos. Cristãos comemoravam o natal. Ali não havia nada para se comemorar. Não sabia ainda se se mataria,mas primeiro mataria sua irmã. Todos os que atacavam estupravam crianças e adolescentes... Ouviu dizer que havia outros lugares da Terra muito mais lindos e prósperos,mas deveriam ser muito covardes, porque os deixavam sozinhos.
Natais são sempre tristes. Sempre. Mesmo quando as crianças têm tenra idade mas conseguem perceber que há quem não tenha o que comer ou comemorar no natal, ou quem se sente bem ou mal. Não ha nada mais atento que o espirito de uma criança mesmo quando parece dispersa, distraída. O Natal é um atentado ao bom-senso, uma ode à luxuria e a todos os 7 pecados capitais, uma falta de caridade e compaixão com o próximo. O Natal é uma afronta ao pobre, patente em sua alegria e sorrisos, com um mundo de mortos e ausentes coberto pela escuridão dos lugares escondidos das fotografias de consumo.
Feliz Natal, exceto para os políticos do mundo inteiro. Andam muito preocupados em passar um Natal muito Feliz, como se fossem pessoas decentes! Alguns até são, mas andam em péssimas companhias.
Rui Rodrigues
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