Costa dos Esqueletos – Um árido grão de areia feito de alma
Eu saía da janela para lhe fazer a vontade, para não provocar discussões, não porque quisesse sair. Meus oito anos de idade não permitiam muito mais do que alguns segundos de teimosia apreciando a tempestade depois da ordem de minha avó para sair da janela. Lá fora o vento empurrava a chuva em cortinas inclinadas, gotas de chuva escorriam pelos vidros das janelas, pombos encolhidos sacudiam as penas nas beiradas dos telhados, chapéus de chuva viravam-se do avesso expondo transeuntes à natureza. Minha avó era daquelas pessoas de mente forte, corpo frágil, mas que temia a natureza. Provavelmente pressentia alguma relação entre os deuses do céu e os amedrontadores trovões, os raios que de vez em quando queimavam alguma pessoa como se tivesse sido assada, esturricada, por ordem dos deuses.
Ainda no dia anterior haviam calcetado a rua com paralelepípedos de basalto cobertos com areia e piche, e os passeios com pedra portuguesa, e fazia sol. Os calceteiros ao bater com os martelos nas pedras lembravam-me os versos de Cesário Verde, apreciador das pequenas coisas da cidade de Lisboa, e que lhe davam vida. Gostava de fixar-me nas pequenas coisas, porque são detalhes da composição das coisas enormes, e não se pode entender o que é grande sem se saber de que é feito, como é composto. Foi assim com o átomo, que compõe planetas e estrelas que sempre vimos sem entender. Sem a compreensão do átomo, jamais teríamos entendido como é o Universo. De vez em quando precisamos ficar a sós, ou até sós, para podermos ver e entender os grãos que compõem a natureza e a nós mesmos.
Foi o que fiz num final de semana ao sul de Angola quando visitei a cidade do Tômbwa a serviço, e mandei parar a van quando estávamos a caminho da cidade do Namibe para apanharmos um avião e voltarmos a Luanda. Tômbwa é o nome dado a uma planta muito especial que apenas existe no deserto do Namibe: A Welwitschia Mirabilis. O deserto é extremamente seco, e as raízes desta planta chegam a aprofundar-se até 90 metros abaixo do nível do solo para buscar a água de que necessita. Nada mais cresce por lá a não ser algumas espécies de líquenes. Junto à costa, há apenas leões marinhos, focas, gaivotas, atraídas pelo farto peixe trazido pela corrente fria de Benguela que chega à costa vinda do Pólo Sul e provoca os ventos alísios e o nevoeiro da costa.
Foi o que fiz num final de semana ao sul de Angola quando visitei a cidade do Tômbwa a serviço, e mandei parar a van quando estávamos a caminho da cidade do Namibe para apanharmos um avião e voltarmos a Luanda. Tômbwa é o nome dado a uma planta muito especial que apenas existe no deserto do Namibe: A Welwitschia Mirabilis. O deserto é extremamente seco, e as raízes desta planta chegam a aprofundar-se até 90 metros abaixo do nível do solo para buscar a água de que necessita. Nada mais cresce por lá a não ser algumas espécies de líquenes. Junto à costa, há apenas leões marinhos, focas, gaivotas, atraídas pelo farto peixe trazido pela corrente fria de Benguela que chega à costa vinda do Pólo Sul e provoca os ventos alísios e o nevoeiro da costa.
Esta corrente dificulta a ida para Norte, porque chega a atingir cerca de 300 km de largura em frente a Benguela, puxando as embarcações para o meio do oceano, a caminho do Brasil. Á superfície, a corrente desce em direção à Antártida e cria a secura que se sente até no respirar no deserto do Namibe e na Costa dos Esqueletos onde fica a cidade do Tômbwa, antiga Porto Alexandre, quando Angola e Portugal ainda eram irmãos briguentos e desunidos, um explorando o outro em troca de muito pouca coisa, quase nada. Esta corrente se encarrega de trazer para a costa todos os tipos de esqueletos de animais marinhos, embarcações que não conseguem vencer a corrente e “morrem” encalhadas na praia. O revolver do fundo do mar e das areias, pelas ondas e pela corrente, mostra diamantes de vez em quando.
Não há chuva na costa dos esqueletos. Há desolação, morte, esquecimento. Nem a humanidade se lembra de forma constante dos náufragos que deram á costa e aqui morreram de inanição, assim como pingüins morrem quando chegam à praia do Peró, em Cabo Frio, como turistas desprevenidos que vêm pela corrente de Humboldt. Encaminhados de volta ao mar, são trazidos pela próxima onda, exaustos, cansados. Jazem finalmente com os olhos perdidos no espaço, as areias recobrindo rapidamente o morticínio, como se tivesse vergonha de mal causado. Mas não seria culpa dos pingüins se encantarem pela corrente sem pensar no dia de amanhã? Melhor pensarmos em decorrências de atos pessoais praticados, o que nos leva a concluir que os pingüins também têm livre arbítrio, não sendo esta uma prerrogativa apenas dos seres a que chamamos de humanos. Não é possível que seja. Haverá certamente sentimentos de animais que ainda não conseguimos identificar. Talvez por uma teimosia em acharmos que Deus fez este planeta apenas para nós. Foram pensamentos como este que levaram à escravidão, à prepotência de uma raça sobre a outra, defasadas apenas por algumas décadas ou séculos de progresso científico.
Parece que a evolução humana se faz como as dunas do Namibe, juntando grãos de areia muito lentamente até que se forme uma duna, mas dunas não têm vida própria: São formadas, empurradas e desfeitas pelo vento. Que ventos nos empurram? E como testemunha, lá estava o esqueleto de navio que já foi belo singrando os mares. Quebraram uma garrafa de champanhe em seu casco quando foi lançado aos mares. Teve uma bela madrinha, cruzou os oceanos sempre invencível vencendo marés e correntes, transportou tripulações, passageiros, fora limpo e escovado todos os dias, pintado para repor a beleza tirada pelas ondas e o sal dos mares. Acobertou amores com e sem sentimentos de culpa. Transportou mercadorias, mas os registros foram comidos pelo sal, encharcados e desfeitos pela água. Ali perto, um esqueleto de baleia que se transformou de organismo vivo em organismo morto sem registro algum, sem funeral, sem comitê de adeus ou lúgubres carpideiras.
As Welwitschia Mirabilis podiam migrar mais para a costa para não precisarem criar raízes tão profundas, mas lá, a água do mar é salgada e as mataria. Se fossem mais para o interior, suas raízes poderiam ser menos profundas, porque lá existem montanhas e água em abundância, mas elas ainda não aprenderam a ter raízes curtas, e a vida não teria o mesmo valor sem a dificuldade de procurar água cada vez em solos mais profundos. Ela aprendeu que são as dificuldades da vida que alimentam a alma.
Antes de perder a paisagem da Costa, olhei pela última vez para as areias, para os esqueletos enquanto bebia alguns goles de água de uma garrafa estratégica de água mineral que há muito ganhara temperatura até se tornar morna, mas mesmo assim, refrescante. Lembrei-me de minha avó e de seus conselhos quanto às tempestades. Certamente desmaiaria se lhe tivesse contado que um dia um raio caiu a menos de cinqüenta metros de mim e de um grupo de amigos, no Rio Grande do Sul, provocando um brilho extremamente branco que quase me cegou, e um estampido que me deixou os ouvidos zunindo por bons minutos. Anos mais tarde viria a constatação de uma leve deficiência, quase imperceptível no meu ouvido esquerdo. A natureza que me criara fizera também seu pequeno estrago comigo. Um dia fará um estrago ainda maior. É inevitável. Mas, quem tem medo da natureza, tão bela, que nos fará esquecer a dor quando tudo se apagar, e a corrente de Benguela e a Costa dos Esqueletos nem representarem mais uma lembrança?
Não encontrei nenhum diamante. Minha avó nunca teve o prazer de tomar banho de chuva.
Rui Rodrigues
Dizer o que, como sempre um excelente texto. Saudades de tomar um banho de chuva e voltar no tempo. Tempo de meninice, tempo de descobertas, tempo de imaginação.
ResponderExcluirParte da história é verdadeira, amiga Carmem. estive lá!... Um local para refletir, melhor que Santiago de Compostela... Abração!
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