Uma identidade não é um registro, um cartão com foto e meia dúzia de informações, um nome um número e uma identificação da cidade e do país. Uma identidade é uma memória. Uma memoria é um conjunto de imagens e sentimentos coletados ao longo do tempo. O tempo depende do ano de nascença. Sem lembranças não há memória. Com o ano da nascença e o nome, uma foto, um número e uma identificação da cidade e do país, se pode mandar fazer uma identidade. Os outros olham para a identidade e para o ser e se a foto coincide com o rosto que veem o chamam pelo nome da identidade. Mas o que veem não é a sua identidade porque o documento não tem memoria, você não lhes contou nada e se contasse se passariam outros tantos anos, tantos quantos viveu, para se dar a conhecer completamente. Omitiria certas coisas,poucas, muitas, depende de você, mas se não lhes contasse tudo, seria identificado como um outro ser.
Nos tribunais de Osíris, o Ka, ou alma do defunto, se apresenta para definir para onde vai. Pesam-lhe o coração numa balança sem vícios, colocando-o num prato e no outro uma pena. Osíris era casado com a irmã e deusa do amor Ísis, pai do deus do céu Hórus, filho de Geb, deus da terra e de Nut deusa do céu. Se o coração do morto pesasse tanto ou menos que a pena, o morto teria direito a viver uma nova vida, evidentemente no além. Osíris não sabia da identidade do morto. Sabia apenas do peso do coração. Muito mais tarde, depois que a civilização egípcia declinou, que todos aqueles deuses tinham sido abandonados, nunca mais se embalsamaram corpos para enfrentarem o tribunal de Osíris. E se descobriu que não era o coração o definidor da identidade dos vivos, mas o cérebro. Trabalhos em vão, construíram pirâmides em vão, mas nada estava perdido. Em certo momento se passou a vislumbrar que em vez do tribunal de Osíris, haverá um dia do juízo final em que os corpos mortos, mesmo que despedaçados, esquartejados, ou queimados, cinzas ao vento, seriam julgados num só dia, todas as partes juntas, reconstituídas. Os deuses que substituíram os dos antigos egípcios julgariam as ações de cada um e lhes dariam aquela mesma nova vida no além que Osíris prometera sob inspiração divina, mas que nunca conseguira cumprir. Os seguidores do Tao têm até disponíveis cerca de 15.000 céus e um rei de Jade. Mas... E a nossa memória, sem a qual não existe identidade, nem aquele tempo cheio de ações próprias de cada segundo inigualável que apenas cada um vive, tantos que parecem uma infinidade deles mesmo que não se viva mais de dez anos, tudo isso apodrecido numa pasta morta de cérebro que depois se transforma em pó?
Conheci o senhor Henrique e a sua mulher Rachel. Haviam chegado da România muitos anos atrás. Eram pais de um irmão meu, Jacob, irmão pelo companheirismo. Estudávamos juntos com o Virgílio Noronha, alunos da UFF, quando Otávio Cantanhede era reitor, curso de engenharia, e com mais alguns companheiros de sala. Eu e Jacob seguimos e nos formamos primeiro. Os outros se formaram depois, por crédito de matérias. Meus pai ainda era vivo e ora estudávamos na casa de meu pai, ora na casa deles. A mãe de Jacob morreu primeiro. O pai sentiu a perda. Foi criticado, mas colocou no túmulo dela luzes de neon. Um dia o sr. Henrique se foi, meu pai também. Tenho quase certeza que foram todos para o Xeól, ou para o céu, ou paraíso de Alah, do Tao, ou do Nirvana, ou que sua memória se apagou poucos instantes após a sua morte, porque cada um de nós nunca sabe no que os outros acreditam realmente. Diz-se, conta-se, fala-se, mas é a memoria que dita as regras, reúne os fatos, julga, determina o caminho. Uma pena no tribunal de Osíris como contrapeso, e Osíris teria o coração muito pesado para a nossa memória tão leve. Osíris não poderia mesmo ter uma vida no além com aquele peso...
No meu caso pergunto-me o que faria no além com as lembranças que hoje tenho, ou o que seria pior, sem elas, provavelmente desacompanhado dos seres e locais que polvilham as minhas lembranças... Aqui entre nós, temo que esse paraíso ou além, ou nirvana ou seja o que for, venha a ser um pesadelo... Aquela mulher que amei, agora nos braços de outro porque mereceu mais... Os oceanos e praias de lá diferentes dos daqui, uns alocados em melhores praias por merecerem mais... Carros de modelos diferentes, orar todos os dias sem necessidade de anja da guarda não dá... Minha família cada um em seu lugar... Melhor não! Deve haver um tipo de contrato. Quero saber como é para decidir se quero ir... Alvíssaras a quem foi, viu, venceu e me possa contar. E no caso de haver virgens, que sejam heteras. Isto é, pelo menos...
(Como será o vinho... Cabernet, Carmenére, Rioja, Champagne, Porto... Asas atrapalham muito ou não... Música.. A música... Clássica não... Louras, negras ou morenas, ou de todos os tipos, mas azuis nunca tinha visto... Nem verdes assim... Sem hora de recolher certamente... Meu número é... Nem precisa falar que o porteiro sabe tudo!... Nem reparei em meu corpo, com que idade chegar, se jovem maduro ou experiente... E o peso... De quando estava mais magro ou mais gordo?...)
Rui Rodrigues
Nenhum comentário:
Postar um comentário