Pesquisar este blog

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Cavalgando num relógio...O cuco não falava!


Cavalgando no tempo, vi um cavaleiro sem cavalo, montando um relógio. Os ponteiros e as horas não diziam para onde ia, nem qual o rumo. O cuco não falava, nem tinha penas, mas as badaladas assustavam, como se estivéssemos atrasados de algo que nem sabíamos o que era..." Tínhamos de chegar a tempo de alguma coisa!... Éramos um só, o cavaleiro era eu!

(Recomenda-se, ao ler, que seja para meditar, mas pode ser lido como quem não tira os olhos do filme comendo pipoca uma atrás da outra, mas a ser lido, que o seja durante a semana, com calma...Depois de uma boa sopa, um bom drinque, uma boa "acamação acompanhada"...)




Perguntei ao cuco onde estaríamos dentro de meia hora, mas ele manteve silêncio até o ponteiro marcar a meia hora. Então saiu pela porta, abriu o bico e disse:"- Cu-co!", recolhendo-se em seguida sem mover uma unica linha de seu corpo. Aquela cuco só sabia dizer cuco. Não poderia contar com ele. Era impossível conhecer o futuro mesmo cavalgando o tempo num relógio suíço. Talvez se pudesse conhecer o passado se o relógio andasse pra trás sozinho, sem que ninguém lhe mexesse. Olhei em volta. Eu estava em alto mar, numa cabine de uma nau de madeira, iluminada por archotes e velas, em meio a uma tormenta que fazia gemer as cordas, as madeiras. Na minha frente, pendurado numa parede, o relógio cuco que eu já não montava, marcava cinco e trinta e cinco da tarde. Perguntei-me o que fazia eu ali, num barco à deriva, sem tripulação porque não ouvia nenhuma voz, vestindo uma roupa de astronauta... Estaria sendo posto à prova de alguma coisa que não me lembrava. Tanto poderia ter batido com a cabeça como estar sonhando. Eram tantas as hipóteses que não me pude fixar numa. De repente ouvi a voz de um vulto que se levantou de uma cadeira escondida num canto do comodo. Vestia-se como nobre de esquadra portuguesa dos descobrimentos.

- Lembra-te que até as pedras falam. Podem humanos dizer-te o que quiserem, tal como acham mais conveniente, mas os genes e as pedras falam! Quem fala mais verdades? Os homens ou os genes e as pedras?

E antes que eu esboçasse uma resposta, ou lhe perguntasse quem era, passou por mim, e desapareceu pela unica porta que existia.






Saí para o convés. Todas as velas estavam içadas, o timão amarrado com cordas para fixar um rumo, cordas balançando retesadas ao vento, respingos de mar por todos os lados, velas escorrendo água a cântaros, um corvo estava pousado na roda do Leme. Ali perto, dentro do quarto de onde eu acabara de sair, ouvi um "crroac" de corvo. E logo mais um, e outro e outro... Contei seis. Entrei para ver. O relógio marcava seis horas da tarde, o tempo estava normal, meu traje já não era de astronauta. Agora vestia um traje de homem-rã e estava num porta-aviões da segunda guerra mundial. O cuco tinha sido substituído por um corvo. O comandante do porta-aviões veio ter comigo mas não entrou. Falou da porta. Disse-me: - Partirá em meia hora no seu P-47. A dois minutos do alvo, no rumo estabelecido, salta com a carga e deixa que o avião siga. Exploda então o alvo. Passaremos para pegá-lo logo que possível. Se despediu dizendo "Semper Fi" dos fuzileiros americanos!





Resolvi sair do cubículo onde estava. Olhei para trás. Não havia relógio algum parecido com os de cucos. Em compensação havia muitos instrumentos ao meu redor, alguns piscando, outros parecidos com relógios. Estava a bordo de uma ogiva na ponta de um foguete e não sabia para onde ia. Escutei uma voz fazendo a contagem regressiva 9... 8... 7... Tinha que me preparar psicologicamente para o tranco no arranque do foguete, a que o pessoal mais técnico chama de empuxo. Um tranco terrível, que nos esmaga o peito, impede a respiração. Muita gente desmaia... 3... 2... 1 ... Devo ter desmaiado, porque não me lembro de qualquer impacto, mas cheguei a algum lugar. Marte não era assim tão parecida com a Terra, cheia de árvores, planícies, animais.





Não estava em Marte. Temíamos os animais. Olhei meus braços, depois meu corpo. Estava coberto de pelos, minha pele era escura. À minha volta havia o pessoal do Clã. Éramos uns sessenta entre homens, mulheres, velhos e crianças, todos negros. Aprendêramos a andar sobre as duas patas traseiras que agora chamávamos pernas, cada uma com um pé, cada pé com cinco dedos. Sabíamos contar mas não tínhamos consciência que isso se poderia chamar de matemática, nem noção de que fosse uma ciência. Contávamos os frutos, filhos e coisas pelos dedos das mãos. Falavam os mais velhos que tínhamos vindo de muito longe, e olhávamos para as terras que se viam ao longe separadas por um oceano de água que nossos mais velhos diziam já ter sido maior. Ha décadas que havia seca. Estávamos a ponto de atravessarmos de África para a Península do Sinai, ali perto do Suez. Disse um velho:

- Partiremos com os primeiros alvores da manhã. Enquanto meus braços suportarem o cajado no ar, atravessareis. Depois disso, ninguém mais passará. Decidam-sequem quer ir. Recomendo os mais jovens!

Notei então a sombra do Sol proveniente de um cajado suportado em pé por um homem da tribo. A sombra era muito longa. Sabíamos assim, pela sombra, que horas eram. O cajado ou bengala, era encimado por uma cabeça de avestruz. Mas isso foi há cerca de 50.000 anos atrás, quando, dizem os da lenda, o mar vermelho se abriu. Prestei atenção ao velho de barbas muito brancas sobre aquele peito ainda forte escuro como breu e peludo. O velho achou que a seca estava no auge, e assim de repente, levantou o cajado e o manteve na horizontal, braços abertos. Tínhamos que atravessar para o outro lado e não esperaríamos pelos alvores. Foi assim que o Mar Vermelho se "abriu" para dar passagem aos povoadores Sapiens do mundo. Quando despontei do outro lado, cercado de tanta água vi-me a bordo de uma nau de madeira, em meio a uma tempestade. No comodo havia um relógio cuco que eu cavalgava. O cuco não falava. Em meio a chiado do cordame e das madeiras rangendo, respingos do mar por todos os lados, relâmpagos e trovões, um vulto se levantou de uma cadeira e me disse enquanto saía:

- Nem devem ter sido 20 que atravessaram. Uns dez eram suficientes para garantir toda uma humanidade de sete bilhões e meio de seres humanos.





E tudo se desfez numa espuma branco azulada, deixando no ar uma leve brisa com cheiro de peixe e iodo. Era esse o sabor dela quando era mais jovem, e não deixou perceber que tinha outras companhias. Depois se transformou num cuco estragado repetindo motes e modos. Perdeu o cheiro e o sabor. Não era marinheira de primeira viagem! O grumete era eu, querendo decifrar o tempo e quanto custava.


Rui Rodrigues

Nenhum comentário:

Postar um comentário