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terça-feira, 4 de agosto de 2015

Trem Extra Noturno



Não é necessário tomar drogas nem beber demasiado para se “viajar” na imaginação. Basta deixar-se levar pelos pensamentos sem censura alguma (ou muito pouca) com um tema na cabeça – que é o do título - e desbloquear a mente [1]. Lá vamos...Viagem comigo no tempo e na imaginação. Será um prazer.

1.  Numa estação de trem.


Passa da meia-noite. Ouço sons de patas de cavalos, relinchos, sons de metais, como que de uma brigada de cavalaria apressada, em carga, que se aproxima da estação. O tropel estanca como que de repente, justo na hora em que escuto o silvo penetrante, agudo, como que de uma locomotiva a vapor. Sim, é uma locomotiva a vapor, verde escura, com marcas da companhia douradas e bem polidas em relevo. As roupas das pessoas que estão na estação são estranhas. Não eram para serem assim. Aparentam ser do início do século 20, talvez por volta de 1910. Ainda não tenho certeza. As mulheres usam vestidos escuros de cintura marcada, a bunda arrebitada, chapéus com enfeites, os homens alguns com chapéus de coco outros com cartolas ou chapéus de abas, sapatos brilhantes, pontudos, e usam bengalas. Estão atônitos, olhares voltados para a entrada da estação de onde chegam os sons do tropel. Algumas pessoas começam a correr para procurar abrigo.


Uma coruja pequena, talvez habitante daquele lugar, agora perdida no meio da confusão, passava esvoaçante de um lado para o outro do trem. No ultimo instante um homem vestido com uma capa preta carrega uma mulher no ombro, com uma mão e com a outra segura o balaústre de uma das portas do trem ainda não fechada e pula para o primeiro degrau. Parece que ambos vão cair, mas consegue segurar-se. A mulher parece desmaiada.
Não demorou mais de um minuto toda esta cena, até que o trem, jogando vapores de fumaça pelos lados e pela chaminé, se afasta completamente. Tudo a preto e branco, menos a mulher e o homem que conseguiram entrar no trem no ultimo minuto. Julgo ter visto a coruja esvoaçante entrar também pela porta ainda aberta. Então Os cavaleiros invadem as gares de piso escorregadio. Ouvem-se tiros. Alguns cavalos tombam arrastando os cavaleiros. Há corpos inertes no chão e sangue escorregadio pelas gares. A cena é de completa devastação.Não estou na estação e nem sei onde estou.

2.  Para onde vai o trem nem todos vão.


A bordo do trem os passageiros murmuravam. Ninguém sabia o que tinha acontecido na estação. Alguns levantavam hipóteses. Seria uma revolução, um bando de criminosos perseguidos pela polícia. Nenhum deles tinha ouvido os tiros ou visto o que se passara. O barulho do trem e os apitos na saída, tocados a todo o vapor na força de largada para impelir velocidade, não o tinham permitido. Além do mais, por causa da fumaça as janelas estavam fechadas. O ambiente era tétrico, reinava um clima de preocupação encerrado num trem fechado com estofados de couro escuro. Um senhor sentado na penúltima fila, bem apessoado a julgar por suas roupas, comentou que no dia seguinte leriam nos jornais e não deveria ser nada de importante, que o importante mesmo é que cada um estava a caminho de seus destinos. E certamente para aliviar o clima, começou a perguntar aos que estavam nas poltronas mais cerca, para onde iam. Uma senhora ia para Paris, um casal para Berlim. Voltou-se para trás para perguntar a um casal, mas interrompeu a pergunta, e fez outra: - Há algum médico neste vagão? Esta jovem está ferida. O companheiro também estava, de raspão na cabeça. Havia uma mancha de sangue no abdômen da moça. Vi quando um médico se acercou e começou a tratar-lhes as feridas. Segundo disseram, tinham estado hospedados no Hotel Bristol em Pyatigorsk e estavam de partida para Calais onde apanhariam um ferryboat para Dover na Inglaterra, quando já á porta da estação tinham sido atingidos pelos cavalarianos. 



Largaram a bagagem, duas maletas, e correram para o trem. Não podiam perder aquela viagem. Não havia ainda cinco minutos que o trem saíra da estação.

Mas que estação? Eu não estava naquele trem, nem sabia onde ficava nem porque a chacina acontecera, mas a julgar pelo destino dos passageiros, seria para trás, na direção de Berlim, da Polônia, ou quem sabe, Itália, da Grécia. Talvez até de Istambul, Moscou ou ainda mais longe, Pequim. Mas de Pequim não. Os rostos não eram orientais, e a estação era do tipo art-nouveau. Talvez não fosse. Temos a tendência de achar que todas as estações com cobertura em finas vigas metálicas entrançadas são art-nouveau. Quanto ao Hotel Bristol, tudo indicava que a estação ficava em alguma cidade ocidental. O que estaria errado? Como aquele homem ferido na cabeça e carregando uma moça tinha podido subir no trem segurando-se apenas com uma mão no balaústre dos dois degraus do vagão? E que coincidência da coruja entrar juntamente com eles. Estaria seguindo-os? Mas como saber, se eu não estava realmente ali?

3.  O Túnel fumarento sem fim.


As luzes dos vagões costumam acender-se quando os trens entram em túneis. Naquela oportunidade não. Permaneceram apagadas. Alguém pegou uma caixa daquelas modernas de Allumettes, riscou um palito na caixa e acendeu. No primeiro brilho, naquele lusco-fusco, tudo parecia normal, apesar da fumaça que conseguia penetrar no vagão. 

Quando o fósforo bruxuleou e se apagou, viram-se os dois olhos brilhantes da coruja que descansava sobre uma pata, no encosto da ultima poltrona.
Depois foi aquele brilho intenso, e numa fração de segundo o som arrasador e o calor. Todos devem ter ficado carbonizados. Logo a luz sumiu. O trem não parou. Tinha uma grande inércia e continuou se movimentando por uns bons duzentos metros até parar resfolegando. Tinha chegado ao final do túnel e a luz então invadiu o vagão. Havia pedaços de corpos por todos os lados, sangue estorricado, o trem ainda ardia, um olho escorregava pela janela mais perto que podia ver. Lá atrás, assustados, estava o casal incólume e uma coruja impávida que ainda olhava de um lado para o outro como que tentando entender o que se passava.
Nem meia hora se passara desde que o trem saíra da estação. E eu não sabia absolutamente nada do que se passava. Nem o motivo da explosão, nem o lugar ou nome da estação, o país, o nome das pessoas, que tropa era aquela, porque o túnel havia explodido. Nem sequer estava no trem. Porque era eu tão ignorante do que me parecia ser tão mais importante? 



Mas uma coisa eu sabia e nem sabia porque sabia: A Oktoberfest em 1910 completava 100 anos, e consumira 120.000 litros de cerveja, o que era um Record para a época. Mas eu preferia vinho e não havia uma festa dessas para o vinho. Este mundo parece feito de um monte de interrogações.Quanta coisa dele não se sabe e nem precisamos saber?
  


1.  Um casal sem uma coruja


Uma ave é como uma pipa, pandorga... Abre as asas sempre contra o vento para poder planar, suster-se no ar. Alivia-lhe os músculos. Poupa energia. Corujas não costumam planar como gaivotas porque seus hábitos são os de caçadora. Preferem usar a força da gravidade e o vento a favor, na direção do movimento, para mergulharem sobre suas presas. Pessoas são diferentes. Ora caçam, ora são caçadas. Quando caçam mostram-se fortes, inflam o peito, enrijecem os músculos. Quando caçadas, choram, adotam atitudes de presa fácil. O casal era uma presa fácil e a coruja pousara sobre uma pedra a pouca distância do casal. Estava inquieta e parecia que a qualquer momento alçaria vôo.
À volta do casal havia mais de vinte soldados. Um deles, munido de rádio de campanha rodou a manivela e pegou o fone. Comunicou: Só há um moribundo sobrevivente de nosso ataque e uma mulher que tinha sido ferida e que veio a falecer. São  gente pobre a julgar pelas roupas. Nem sombras da princesa Anastásia. Não estava neste trem.
Esperou mais uns dois segundos, desligou o radio, pegou seu  revólver e atirou no rapaz que carregara a moça para o trem na estação.

A tropa abalou dali largando a mulher á beira dos trilhos. A coruja ficou por ali por mais uns minutos. Então viu a moça abrir os olhos, levantar-se com dificuldade, olhar para se certificar que os soldados já estavam longe, e cambaleante beijou o rapaz que lhe salvara a vida e se afastou dali em direção contrária. Certamente desistira de ser princesa. Talvez até de sua identidade. A coruja e eu desaparecemos. Que importa quem eram os mortos do vagão, quem era o comandante da cavalaria que invadiu a estação, e se o hotel Bristol ainda da época da Rússia livre, antes da revolução bolchevique ainda existe? Anastásia sumiu. Desapareceu. Por um breve momento histórico,foi assunto popular porque era um mistério. O mundo gosta de mistérios mas os esquece rapidamente. É muita informação que não cabe num cérebro humano de forma instantânea. Nem no de uma pequena coruja de olhos grandes. A experiência histórica é sempre solapada pela fé e esperança de que, mesmo se sabendo que tudo é impossível, continuar tentando. É tempo perdido. A experiência dos desastres históricos é mais forte. Tudo o que se fizer para copiar o passado derrotado é arremedo.

Já não há lugar para Czares nem para comunistas. 

® Rui Rodrigues 


 [1] Para os psicólogos de plantão, a mente não está completamente desbloqueada. Ou melhor, até está, mas há um público a atender. Escolhem-se caminhos na história de uma infinidade de opções. 

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