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sábado, 1 de agosto de 2015

O meu tio Miguel Ângelo

(Texto escrito em 2012 e revisto para acrescentar fotos)




O meu tio Miguel ângelo - A segunda “grande” viagem da minha vida

Não posso falar da segunda sem antes fazer uma referência à primeira.

Eram assim os combóios naquele tempo.

A primeira aconteceu quando eu tinha cerca de quatro anos de idade. Lembro-me do cheiro do trem, misto de comida, de farda de soldados, de fezes de porco e de galinha, vapores de uma fábrica que me passava pela janela quando despertei. 



Foto da Estação de Peso da Régua.

Tinha embarcado á noite em Peso da Régua e ia para o Porto, para depois fazer o traslado para Lisboa. Dormi por bom tempo, porque estava nascendo o dia quando vi a tal fabrica passar pela janela bem devagar. O trem era a vapor, apitava, e nos túneis nos enchia de fumaça, a ponto de todos correrem a fechar as janelas. Olhei à minha volta e vi umas senhoras idosas no banco de trás. Uma estava levantada, ajeitando a sua bagagem na prateleira. Ela ria, todos riam, porque um porquinho que ela levava numa caixa resolveu urinar em cima das pessoas que estavam em baixo. Com o alvoroço, e os comentários, galinhas cantaram. O cheiro de fardas do exército, cinzas, com cintos e botas pretas enceradas com banha de porco provinha dessa mistura. Lembro-me a chegada à Campeã, e a chegada a Lisboa. Eu viajava com minha avó. Possivelmente com mais alguém, mas essa viagem deve ter sido traumática, porque não me lembro de mais ninguém de família ou de amigos nesse trem, a pesar de minha excelente memória. Nem do resto da viagem. Provavelmente estava muito entregue a meus pensamentos ou dormindo de cansado. lembro sim, do transbordo na estação do Porto, para pegarmos o combóio para Lisboa.


A foto é da Av. Almirante Reis junto ao Largo do Intendente onde meu tio trabalhava e morava. Eu, minha tia e minha avó, morávamos umas duas quadras acima, na Rua Francisco Sanches, 26. A dona do andar era a dona Lucília que morava com uma irmã, as duas idosas.   

Havia-me mudado definitivamente de minha terra, Fornelos, em Santa Marta de Penaguião, para Lisboa. Minha vida seria lá, a partir da chegada à estação de comboios de Santa Apolônia.Dois anos depois, meu pai foi para o Rio de Janeiro. Fiquei em Lisboa com meu tio Miguel Ângelo, minha tia Elisa e minha avó paterna, Maria de Jesus Pinto Nogueira. Deixara lá a minha mãe que viria a falecer, muito jovem, em seis anos. Morreu aos 30.

Minha escola primária no Largo do Leão.

Um ano depois eu já estava na escola do Largo do Leão, já lia, escrevia uns bons garranchos. Meu tio Miguel era um “boa pinta”, coisa de ator de cinema. Eu queria ser como ele. As namoradas eram de fechar o comércio, todas bonitas, lindas, cheirosas. Naquela época estava na moda uma canção da Carmem Miranda que cantava " chiquita bacana lá da Martinica".  



Largo de Arroios onde meu tio se encontrava com a namorada. Na parte atrás do fotógrafo fica a ponte da Rua Pascoal de Melo, onde moravam minha prima Alice e a Fernanda, com o Teófilo. Ele tinha uma voz "esquista" porque respirava mal por causa de um ataque cardíaco que tivera. 

Na brincadeira ele dizia que elas eram também minhas namoradas. Eu sabia que não, mas ele não sabia que eu sabia. Nunca contei a ninguém que na minha  infância infantil de 4 anos uma menina um pouco mais velha me convidara para ir para o caminho da estrada para passear e que debaixo das parreiras fiquei a saber a diferença entre meninos e meninas... Como esquecer aquelas calcinhas de algodão e o que estava por debaixo delas? Ora, as namoradas de meu tio, quando eu tinha sete anos, não me iriam mostras as suas calcinhas, nem mais ou menos... Em compensação, já que não as dividia realmente comigo, meu tio trazia-me quase todos os dias uns chocolates da venda, ou umas bolachas, rebuçados, pirulitos. Um dia ele tinha comprado um lenço de cabeça para a namorada como presente de aniversário. Era um lenço verde com pintas brancas, de seda muito fina. Minha tia que fuçava tudo descobriu o lenço e ficou muito feliz e acabou por ficar com ele. Dessa confusão que se seguiu, eu não me esqueço. Descobri pela primeira vez que até família unida pode ter as suas desavenças por coisas que não valem nada. 


Esse de óculos embaixo parece ser o meu tio. A foto peguei na net. Terá sido sorte, ou não é ele?

Para a escola, eu ia a pé, mais ou menos oito quarteirões. Com essa idade, minha vida era levantar, ir para a escola, assistir ás aulas, correr até suar no recreio, almoçar na escola o almoço que minha tia Elisa me levava, voltar a estudar, voltar para casa, comer um lanche, fazer os trabalhos de casa, jantar, assistir ás notícias do dia no rádio, e dormir. As sextas feiras passava um programa da Maria Manuela Patacho com histórias faladas com vários personagens. Era a minha única grande diversão! Isso e me divertir no recreio da escola. No dia seguinte, tudo nova e exatamente igual. Aquilo para mim era uma prisão, um tédio, mas gostava de estudar. Era tudo pelo futuro. 

A foto abaixo é do largo do Intendente

Imaginem quando meu tio Miguel me perguntou, uns três dias antes do grande dia, o da viagem,  se eu queria ir com ele numa excursão que passava pela barragem do Castelo do Bode... Meus pulmões não cabiam no peito, o coração acelerou, a vista ficou turva, e comecei o meu chorrilho de perguntas que nunca mais acabavam. Quanto tempo seria a viagem, aonde íamos, o que havia lá, como era o ônibus, de que cor era, como eram as estradas, se tinha rios, se tudo era parecido com Fornelos...



Não dormi durante três dias e três noites. Nem pregar olho... Quando ia dormir, o papagaio do corredor gritava: “Olá... Quem passa?... É o rei que vai pra caça... Ó papagaio looooouuuuroooo”. E lá ia eu sonâmbulo para o colégio.
Não perdi um só segundo da viagem, olhando as paisagens, casas, mosteiros, a cidade de Caldas da Rainha, o Mosteiro da Batalha a barragem do Castelo do Bode com a água represada de um lado e o rio pequeno, diminuto, lá embaixo, do outro lado.  Aquilo me impressionou. Talvez um dia viesse a ser engenheiro, porque eu ia muito bem nas matemáticas e nas ciências.   
Lembro-me vagamente do grupo (da malta) que dizia que eu era bem comportado, das fotos, dos prédios, das paisagens planas que eram tão diferentes das montanhosas de minha terra natal. Durante a viagem vinha um cheiro a feno que entrava pelas janelas, e isso me lembrava o sabonete que usávamos lá em casa: Feno de Portugal. Olhei em todo o ônibus. Não vi nenhuma mulher por quem meu tio pudesse interessar-se. Afinal, nós tínhamos o mesmo gosto para elas. Até as dividíamos... E sei que se houvesse alguma, ele ia dar aquela piscada fatal que me ensinou a dar. Na minha inocência de então, fiquei impressionado como que as mulheres se impressionavam com uma piscadela, sem saber quem o sujeito é, o que faz, o que quer. Sempre perguntavam depois, quando já estavam "amarradas". Perguntei-me, sem dar muita importância, porque razão o meu tio não tinha levado a namorada na excursão. Só meses depois descobri.Meu tio também me deixava. Ia para o Brasil, para ganhar a vida junto com o meu pai. Eram irmãos, amigos, seriam sócios.

A loja de meu pai e meu tio era na Rua Alexandre Mackenzie. no centro do Rio de Janeiro, na foto abaixo, no segundo prédio da direita para a esquerda. 

Depois dessa viagem, se a vida já me parecia uma prisão, passou a ter vapores de algo pior. Saudades dos bons tempos, das canções da ‘Chiquita bacana lá da Martinica “ da Carmem Miranda, dos passeios com as namoradas de meu tio, dos doces que me trazia, do óleo do fígado de bacalhau que me ajudava a tomar, dizendo-me que "um homem é um homem e um bicho é um bicho" e que os homens têm que ser fortes. Saudades do meu tio que me ensinava a ler e a escrever e que leu um livro sobre um velhinho que se tinha perdido da família e que na noite de natal, pobre e esfarrapado, batera à porta da sua própria família para pedir uma esmola e saiu sem dizer quem era... Meu tio me ensinou também os bons sentimentos.




Grande tio, por uns tempos o meu pai, sempre o meu grande amigo, um exemplo de homem forte, determinado, a quem nunca vi discutir em família.  Sei que cada um é como é. Ele é assim.Um grande abraço, tio Ângelo, cheio de saudades e como novidade, meu filho Beto é muito parecido com o senhor. Nunca o ouvi levantar a voz pra ninguém. É verdade que meu pai também era assim. 


Rui Rodrigues

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