Muitas vezes desejamos dizer algo que achamos importante, mas "faltam-nos" palavras ou não sabemos exatamente por onde começar. Nesta fase, antigamente, os escritores costumavam encher seus cestos de papel com papéis amassados com meia dúzia de palavras escritas. Boa parte servia para acender a lareira. Quanto a mim e desta vez, tentarei não me preocupar com o início nem com o fim, mas com o meio, porque há coisas que nunca se sabe como começaram nem porque terminaram ou como vão terminar. As épocas podem ser quaisquer, porque enquanto houver vidas, a percepção persiste.
Europa, cerca de 40.000 anos atrás, paleolítico.
Os mamutes do gelo.
"O que sulca". Era assim que me chamavam na tribo, porque usei terras coloridas misturadas com água e gordura animal para desenhar os animais que caçávamos nas paredes da caverna onde vivíamos a maior parte de nossos dias. Ao pintá-los, a minha maior preocupação era captar a vida desses animais, o que os fazia respirar, ter o mesmo líquido vermelho, tão igual ao que corria dentro de nós. Viviam pastando grama e não se preocupavam quando lhes aparecíamos por perto. Mamutes não vivem no gelo, porque no gelo não há nada que possam comer. Vi muitos deles morrerem durante nevascas muito fortes, mas vi-lhes também um alento muito mais forte, e não havia diferença alguma entre eles e nossa tribo, mas eles tinham uma força muito maior. Precisávamos comer. Comemo-los!
Nós os matávamos, é certo, mas muitos de nós morriam nessas empreitadas. Caíamos, quebrávamos costelas, pernas, cabeças, e isso significava a morte que não era mais difícil porque nos davam mandrágora amassada. Íamos para onde se vive eternamente sem dores. A tribo gostava muito de mim por meus sulcos pintados nas cavernas onde vivemos enquanto havia pastagens. Achamos que "aprisionamos" o espírito deles ao desenhá-los, ao comer o interior de seus ossos. Quando a neve que caía deixou de recuar no tempo quente, e os pinheiros começaram a secar, saímos mais para o sul. Comentava-se na caverna que jamais voltaríamos para trás. Fazia muito frio, já não havia caça, nem frutos, nem arbustos. Por causa de minhas pinturas não me deixavam ir caçar com eles. Eu ficava com as mulheres e as crianças na caverna e me divertia com elas. Com as mulheres sempre às escondidas de uma forma, e com as crianças de outro. Um dia, numa ida ao rio para acompanhar as mulheres, uma cobra me mordeu. Jogaram-me numa cova no gelo frio, fora da caverna, e me jogaram flores. Eram lindas. Depois fui adormecendo com o frio, vi o meu mundo ir ficando apagado até que finalmente desapareceu no baço da paisagem branca e cinza, sem cor nem volumes e tudo ficou em silêncio. Não sei onde estou, não vejo nem sinto nem ouço nada. Não sei há quanto tempo estou assim. Não tenho notícias da tribo. Não tenho nada, mas não sinto falta de nada. Absolutamente nada! Os mamutes eram herbívoros. No gelo não poderiam comer nada! Eu não poderia ter desenhado mamutes no gelo.
Rui Rodrigues
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