Só eu e ela sabíamos: Ela não voltaria a ver os filhos homens que haviam emigrado para o Brasil. Eles, eram meu tio que me dava doces e "dividia" as namoradas comigo, e meu pai,que do Brasil mandavam dinheiro para minha tia administrar a vida dos três: A dela mesma, a da mãe e a minha. Eu tinha 13 anos quando ela morreu. Durante os primeiros anos de emigração minha tia continuou trabalhando como enfermeira com o Dr. La Féria. Decorei o nome e ela até me levou no consultório dele na Casa do Alentejo que ficava ali perto do Chiado. Depois minha avó adoeceu e minha tia teve que cuidar dela. Mudamos até de casa. Saímos do apartamento moderno, cheirando a novo, na R. Ator Vale, onde meu pai chegou a morar, e fomos para um quarto e sala com banheiro comum, numa casa que Dona Lucília e a irmã alugavam, duas idosas desconfiadas, mas muito boas, que tinham três gatos, um papagaio e um baú de lembranças que quem mais consultava era eu. Muitas fotos e cartões postais. Quando novas tinham viajado muito. O maior gato era branco, peludo, chamava-se Heitor e adorava dormir em cima de um muro na divisa com o prédio da rua debaixo. O piso ficava uns doze metros abaixo, 4 andares. Eu lia a Bíblia repetidas vezes pra ela e saía pra passear quando ela podia caminhar. Íamos até a Penha de França, Jardim Constantino, e pelo Natal sempre havia saloios vendendo perus pelas ruas, e uma porção de pacóvios em volta com vontade de comê-los...
Hoje me lembrei dela. Tinha olhos azuis claríssimos, quase transparentes. Faleceu com 68 anos e eu já vou nos 72. O filho dela, meu tio Miguel, já chegou aos 90.
Minha avozinha paterna, tão débil fisicamente, coitadinha, me dizia: "Dá Deus as nozes a quem não tem dentes". Ela tinha-os, mas a frase tinha um alcance muito maior...
Imagine alguém fazer uma viagem de férias a Paris e a Machu Picchu, sem saber nada de história da França ou do povo Inca. Na volta vem com meia dúzia de imagens na cabeça, umas lembranças na mala pra impressionar os amigos, e umas historietas de guia turístico com grande sorte. Antigamente isso rendia muitos "papos" e mostras de álbuns e filmes de viagem.
A maior riqueza é o conhecimento. A seguir, são os amigos, e a seguir a saúde... Até que se chega em minha avó e nos lembramos das nozes e viagens compradas com dinheiro sonante que sem dentes, só amassadas e em bolos. Ainda sobrou um bolo de anteontem trazido por uns amigos romeiros que passaram rápido como quem nem passa e nem pernoitaram.
Enquanto fazia o café fiquei pensando no quanto de mim os romeiros realmente viram. Foi somente hoje pela manhã que me lembrei do "Cinema Imperial" que existiu na mesma rua onde eu morava na companhia de minha avó, minha tia, um papagaio, duas gatas, um gato e muitas lembranças. Não... As lembranças eram poucas. Agora é que são muitas e boas, e a maioria delas são de um andar em Arroios com 13 dependências. Foi lá que minha avó, com respiração difícil, sempre cansada, respirou pela última vez. Eu nem percebi. Minha tia me mandou sair para o jardim em frente. Naquele tempo obedecia-se. Quando me chamaram já a tinham lavado, vestido, dado uma cor de viva com produtos de beleza da minha tia. Enquanto me lembrar e para sempre, minha avó!
Prédio da Rua de Arroios 174 onde minha avó faleceu. Nessa época vivíamos num andar inteiro com 13 cômodos.
Rui Rodrigues
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