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domingo, 14 de agosto de 2016

Retalhos de um tudo solto de um sólido quase nada...




Foi em Cabo Frio no ponto de ônibus em frente à Rodoviária, no sentido centro. Uma senhora proporcional de corpo, muito elegante, com botas de montaria, gabardine curta dos anos 60, luvas... Realmente a temperatura tinha baixado na cidade, mas não a ponto de cobrir os dedos. Não me lembro de que lado chegou no ponto de ônibus, mas logo saiu a caminho da rodoviária. Há momentos, pessoas, situações que poderiam ficar mais tempo em nosso campo de visão. Agradam tanto por qualquer motivo ou mesmo sem nenhum,  que nos deixam saudades e uma lembrança. E nem mostrou o rosto porque o curto tempo que por ali ficou, ficou de costas para mim. Tenho certeza que não me viu quando chegou. Fiz um ca lá pelas quatro da manhã, quando me lembrei dela. Por vezes é bom não ser fotógrafo, estar sem câmara ou estar com o celular mas ter coragem de não bater a foto para não estragar a imaginação. Pode ter tirado as roupas do bau, ou passado numa dessas lojas de roupa usada e ter feito uma extravagancia barata. Poderia estar esperando alguém, ou ter desistido de pegar táxi ali perto do ponto - na realidade ela estava um pouco afastada - e ter resolvido pegá-lo no ponto de táxis drodoviária. Onde iria? Coisas sem importância na vida, mas se atentarmos para questões de importância, qual a que realmente tem a vida? Se tivesse, todos os que  viveram estariam na lembrança de todos os que vivem. Na verdade ela me pareceu a parte viva de 1960, inserida numa paisagem de 2016. Perguntei-me se por acaso não teria olhando a senhora através de um portal do tempo, assim como em universos paralelos que não creio que existam. Pensei em me dirigir aos outros passageiros e perguntar-lhes se tinham visto a tal senhora, mas abandonei a idéia, porque eu tinha certeza de a ter visto no mundo real, ali mesmo, antes de embarcar. E não fui atrás dela porque não tinha cabimento. Ainda diriam que se tratava de assédio sexual, e não passaria eu por uma vergonha dessas. Arrependi-me, ou não, de não ter batido palmas. Ela merecia e tenho certeza que todos os transeuntes concordariam de bom grado em lhe bater palmas, mas as pessoas são tãsusceptíveis, tão melindrosas e sensíveis, que ela poderia pensar que se tratasse de gozação. Mas não. Não. De forma alguma. Por breves instantes ela reinou sobre as ruas e o inverno de Cabo Frio, provavelmente sem nunca chegar a saber que reinou. Tento lembrar-me da idade que aparentava, mas diria que princesa não era nem rainha-mãe. Estava na idade de não pensar na idade e foi pena não lhe ter sentido o perfume. Estava muito longe de mim e não tenho o faro tão bom como o dos amigos caninos, desses que andam pelas ruas e se amam ali mesmo sem a menor cerimônia e depois vai cada um para seu lado. Baladas são assim. Seres humanos têm lugares adequados para serem respeitados e para não serem. Quem quer vai pra lá, quem não quer fica descansando para quando quiser ir, e se não for ninguém sentirá sua falta por muito tempo, ou quase nada. Ela não olhou nem para trás nem para os lados. Nada lhe interessava. Por isso não me viu e isso teve uma importância relativa na minha vida, porque se me tivesse olhado quem sabe o que poderia acontecer... A minha vida e a dela poderiam ter mudado completamente ou continuarmos com a vida assim solta, sem nada sólido a prender-nos, cada dia um retalho a juntar para a grande colcha da vida.         

   
® Rui Rodrigues 

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