Antes de
abordar o preparo propriamente dito de peixes e crustáceos, há que elucidar bem
o nosso envolvimento neste oceano em que nos originamos, e cujas condições são
reproduzidas no ventre de nossas mães para que possamos, sem maiores traumas,
nos adaptarmos ao “nascimento”, e onde nem faltam os marulhares das ondas como
se fossem do mar... Um nascimento preparado e cuidado para não sofrermos fortes
traumas. Porque a natureza nos trata assim com tantos cuidados? Preparar-nos
suavemente para o nascimento, reproduzindo todo o ambiente em que a vida se
originou, passando por todas as fases até a do Homem Sapiens?
Vivo á
beira do mar, mas nasci nas montanhas onde neva inverno sim, inverno também.
Quando num projeto com uma companhia americana me dei a oportunidade de
escolher onde seria alocado, escolhi o Porto, rejeitando a Mina e a Estrada de
Ferro. Queria ficar perto do mar, dos peixes, do oceano, de minha mãe. Se
procurarem no fundo de minha garganta ainda deve haver resquícios de guelras.
Um amigo meu, daqueles do peito, pessoas fáceis de serem amigas, John
Tankersley, estava em Barranquilla e mandou um radio. Perguntou se lhe
conseguia uma caixa de lagostas vivas ao chegarem a Barranquilla. Entre um
alívio e outro no duro trabalho na administração das obras do Porto de Puerto
Bolívar, naquela época Puerto de Media Luna [1]
por seu formato, consegui num sábado viajar até uma aldeia índia e programar
para a semana seguinte, no sábado, a colheita das lagostas, e conectar com o
vôo que chegaria a Barranquilla cerca de duas horas depois. Tudo deu certo,
John recolheu a caixa no aeroporto de Barranquilla, as lagostas chegaram vivas.
Um bom sushiman consegue prepará-las de modo que os convidados possam apreciar
a carne ainda pulsante de lagostas que não puderam se transformar em répteis e
ficaram a meio caminho, caminhando no fundo do mar, mas apenas no mar, sem
jamais se arriscarem a dar alguns passos nas areias da praia. Sua alimentação
não está nas areias. Lagostas nunca tentaram comer comida diferente. Soube que
os pratos que fizeram com as lagostas foram sensacionais. Eu aprendi a comer
sushi e sashimi com o Kasuo, um descendente de japoneses que trabalhou comigo
na Contal em São Paulo, na Avenida Paulista. Meu filho é sushiman. Meu filho
faz pratos sofisticados, eu continuo preparando á moda popular como aprendi com
Kasuo: Limpo os peixes, corto em cubos, jogo gengibre ralado, adiciono molho de
soja, e “traço”. Por vezes faço um arroz, uso algas, aquela pasta verde que
arde e me faz quase chorar... Há muito que aprender com os povos da Terra.
A
propósito de aprender, tive um pesadelo ao preparar Congros-Rosa que comprei
num supermercado em Cabo Frio. Estavam como que recém pescados, os olhos
brilhantes, transparentes, escorregadios, pareciam vivos. Os congros têm um
olhar especial. Parecem inteligentes. Ia limpá-los quando resolvi parar por uns
instantes. Olhei um deles bem nos olhos. Nem parecia morto. Senti que
estremeceu quando o olhei. Talvez fosse uma miragem por ter tomado uma
caipirinha, mas uma só não me faria ver miragens, e miragens são outra coisa, e
só acontecem no mar ou nos desertos. Talvez fosse um delírio, mas delírio de
quê se não uso drogas e só tomei uma caipirinha? Preocupei-me quando o ouvi
falar:
- Porque
morri?
- Para
salvar a humanidade...
- Quem
me matou?
-
Pescadores...
- Como?
Foi numa cruz?
- Não...
Foi numa rede!
- Sabes
que Congros podem ficar muito grandes. Porque mataram congros tão pequenos?
- Creio
que deve ser porque dos pequeninos será o reino dos céus...
- Também
vou para o céu?
- Deves
ir...
- Mas
primeiro farei um estágio no teu estômago e nos teus intestinos até me
transformar em merda, não é?
- Creio
que é... Não minto para ninguém. Não mentirei pra você. Não gosto de mentir. Se
doer, alivio e conforto, mas não minto.
- Sei. E
viste o meu sangue?
- Vi. É
vermelho!
-
Isso... Igual ao teu, e de vocês que nos comem. Até respiramos.
- É...Se
não comermos vocês, comemos outros. O que não podemos é morrer de fome.
- Viste
que temos cérebro? Olhos? Barbatanas que correspondem aos vossos braços e
pernas? Pele?
- Vi
sim... Fiquei impressionado. Parece até que vocês são inteligentes.
- Claro
que somos. E muito. Mas temos inteligências diferentes. Muito diferentes.
- Por
exemplo...
- Achas
que não percebemos redes e anzóis?
- Acho!
-
Enganas-te. Percebemos, mas no caso das redes, sabemos que fomos apanhados. Nem
nos desesperamos. O que sentimos é falta de ar dissolvido. Vosso oxigênio
concentrado nos mata. É como respirar água oxigenada. Mas quando nos prendemos
num anzol fazemos uma aposta com nós mesmos. Um dia aprenderemos a roubar a
isca e não ficarmos presos nos anzóis. Já temos peixes que conseguem fazer
isso.
- Pretendem
então que a espécie humana passe a não comer peixes...
- A que
chamam vocês de “espécie”? Não existe isso. Foi um erro vosso de classificação.
O que existe é a Natureza, que se expressa de diversas formas, árvores, peixes,
mamíferos, etc... A Natureza que contém a vida é só uma forma da natureza
inanimada, a das pedras, da água... Uma diferenciação. Por isso todos estamos
sujeitos ás leis da natureza: Nascer, crescer, reproduzir-nos e morrermos. De
apenas um ser vivo que reste no planeta, a natureza faz bilhões de espécies
novas. Não enxergaram isso ainda?
- Creio
que não. Pensamos que só nós, os mais inteligentes, fomos feitos à imagem de
Deus.
- Da
natureza, queres dizer... Não vês que se os peixes desaparecerem, os animais
desaparecerem, os vegetais sumirem, vocês desaparecem? Não estarão confundindo
Deus com Natureza?
- Não
entendi...
- Claro
que não! Vossa inteligência está voltada para um determinado tipo de
raciocínio, mas perderam a capacidade de análise global e total. Só vêem
particularidades. A Terra por três vezes já teve suas espécies todas
aniquiladas, e vocês nem existiam. Ou seja, a vida na Terra foi feita ANTES de
vocês, humanos existirem. Bilhões de anos antes. Mesmo assim, a natureza, a
partir de meia dúzia de espécies que conseguiram sobreviver, conseguiu – a
natureza conseguiu - criar toda essa diversidade que vês, incluindo
Congros-Rosa como eu... Sem vocês, a natureza continuará... Entendeste agora?
-
Entendi... Quer dizer que Deus é a Natureza e vice-versa?
- Não te
ocorre que Deus possa ter suas leis e que essas leis determinem no dia a dia o
que será o dia seguinte aqui na Terra, sem precisar que Deus esteja em toda a
parte para dizer o que fazer, o que ocorrerá? Se Deus é realmente perfeito,
estabeleceu as leis e foi para outra parte do Universo, deste ou de outros, que
ninguém sabe o que Deus faz, onde está... A natureza foi o que deixou. A
natureza do Universo e a natureza das coisas vivas que nascem, crescem, se
reproduzem e morrem. Tu também vais morrer, e se te comerem depois de morto,
que diferença vai fazer? Nenhuma! Podes me comer agora... Não quero conversar
mais.
- Não
consigo mais te comer...
- Vais
me desperdiçar? A mim não faz a mínima diferença... Vai... Frita-me, come-me
cru... Joga-me limão até ficar com a carne ardendo... Cozinha-me ou leva-me ao
forno... Já morri mesmo... Mas me mataram tão cedo que nem me pude
reproduzir... Isso é sacanagem, devia ser punido como crime.
- Sabes,
Congro-Rosa... Alguns ancestrais nossos comiam o cérebro de seus inimigos para
adquirirem deles a sabedoria, a valentia, a força... Se estiverem certos, nesse
fenômeno, se fosse fenômeno, eu não deveria comer peixe... Vossa sabedoria é
muito rudimentar...
- És um
idiota!... O que é sabedoria e o que é rudimentar? Transar para ter filho é
rudimentar? Criar os filhos é rudimentar? Queres inteligência mais rudimentar
do que essa? Mas sem essa inteligência rudimentar não estarias aqui
questionando minha inteligência. Se não quiseres me comer, joga-me no lixo...
Mas vais jogar nove reais fora, mais o custo de transporte, iluminação,
temperos, etc? Estás rico?
Foi
então que fritei os congros-rosa... Mas devo confessar que ficaria muito
satisfeito se pudéssemos jogar pedras e água no liquidificador, e nos servir de
alimento. Porque nossa natureza, ou devo dizer Deus, não pensou nisso? Congros-Rosa são muito inteligentes. Têm um olhar muito inteligente e inquiridor.
® Rui Rodrigues
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