Ilídio Francisco Olegário Barnabé estava desempregado aos 45 anos, ainda jovem. O mercado não o reconhecia como jovem, e os amigos, bom... Os amigos eram pessoas muito honestas de princípios que só indicavam amigos de amigos, e Ilido Francisco era apenas amigo e não amigo indicado pelos amigos. Assim, neste estado de pranto, Ilídio Francisco, engenheiro formado, com bastante experiência nacional e internacional em obras de todos os tamanhos e especialidades, falando e escrevendo quatro línguas de mercado, lá apanhou seu ônibus e foi para a sua entrevista de emprego: Uma empresa de construção terceirizada, isto é, trabalhava diretamente para o Estado, embora para o Estado a maioria de seus custos fossem sempre “indiretos”.
- A Entrevista – fase um.
Depois de uma longa espera, foi finalmente introduzido numa sala onde o chefe de Érrehagá[1] o esperava por detrás de uns óculos que tentavam disfarçar seus olhares inquisidores, como quem escuta com a disposição de ver onde que você está errando, de ouvidos em seus atos falhos, olhando de vez em quando para suas pernas e mãos para ver se estão suadas, demonstrando nervosismo. De vez em quando dava uma cheirada mais longa para ver se seu perfume tinha qualidade ou se era marca “roscoff”. Se relógio rolex comprado em camelô não passará desapercebido nunca. Se passasse por aquela entrevista ainda teria que enfrentar mais umas outras duas: A de capacidade técnica e a de capacidade mental para saberem se tem ou não algum desvio de mentalidade psicossomática, além, evidentemente, do exame médico. O resultado dessa entrevista ficou pendente, porque o chefe do Érreagá imediatamente mandara fazer consultas ao CPF, aos tabeliões da cidade, aos Bancos e às Centrais de polícia: Precisavam saber se Ilídio estava com nome sujo na praça, se tinha crédito, se tinha multas com a Polícia de Trânsito, se já dera entrada em alguma delegacia de polícia, se tinha alguma mulher solicitando pensão alimentícia e se estava sendo paga, e como eram as postagens do Ilídio no Facebook, enfim, uma devassa na vida dele, na real e na virtual, que nem nos tempos da ditadura militar – ou do regime militar – as empresas se arriscavam a fazer. Assim, mas tranqüilo, Ilídio lá foi para a segunda entrevista com o responsável pela seção de “construção”. Atendeu-o um conhecido dirigente que sempre aparecia nos noticiários quando se tratava de apresentar ao público televisivo o “andamento” das obras, como se as obras tivessem pernas. Já o conhecia da TV. Fez-lhe muitas perguntas sobre técnicas de construção e até lhe pediu uns “conselhos” sobre equipamento a utilizar numa obra que já estava em “andamento” com todos os equipamentos contratados. As respostas de Ilídio foram impecáveis. Salientou num “à parte” que tanto tinha experiência em construção, propriamente dita, como em planejamento, controle de custos, contratos, gerenciamento. O engenheiro entrevistador franziu o sobrolho levemente. Não pretendia ter um concorrente ao seu próprio cargo, mas estava precisando muito de alguém em quem tivesse confiança para o ajudar em suas funções. Ilídio poderia ser o cara certo se tudo estivesse certo com ele. E nem fumava, que era o que lhe parecia pelo “cheiro” e pelos dedos sem marcas de nicotina. Ilídio sempre pensava nestas horas que o mercado sempre exigia dos candidatos uma candura, uma competência, uma beatitude que não se viam em lugar nenhum. Num mundo cheio de ambiciosos, maracutaias, golpes, abusos de toda a ordem, exigir de um candidato todas essas virtudes, era pura idiotice. Na verdade o que desejavam ver é se o sujeito sabia alguma coisa das funções, se tinha apresentação visual, se era bom falante, bom ouvinte, se estava perfumado, se vestia adequadamente e principalmente se sabia mentir com classe. O resto era detalhe. E ficou no aguardo de nova entrevista porque aparentemente o gerente havia gostado de seu comportamento e conhecimentos. Estava a meio caminho de ganhar um emprego...
Chegando em casa, a mulher e os filhos, já crescidos, quase se formando, perguntaram como foi a entrevista. Pela cara de Ilídio parecia ter sido boa, esperançosa. Resolveram comemorar. Abriram uma garrafa de vinho tinto que sobrara do aviso prévio anterior, e encomendaram uma pizza da pizzaria da esquina. Nessa noite até fizeram amor porque a alegria de viver voltara. Pena que só deu para dar uma. A esposa sempre atenta, disse para ele não se preocupar. O vinho era mesmo velho e de muito alto grau alcoólico. Era argentino de Mendonza, e mais seco que o deserto de Atacama lá no Chile. Ele gostava, mas a mulher mais habituada ao supermercado da esquina gostava daquele suco de uva alcoolizado e açucarado, rotulado com o nome de “vinho suave”. Ilídio e todos em casa, ao longo de um tempo que de repente ficara extremamente lento esperavam nova chamada para entrevista. Os dias foram passando.
- A entrevista – fase dois.
O doutor Alonso Patranhos estava de bom humor. Acreditava que tinha encontrado o seu sucessor para que por sua vez pudesse subir mais um degrau na empresa. Estava de olho na vive-presidência. Poderia ser o Ilídio a ocupar o seu cargo que assim ficaria vago e não queria perder a oportunidade.Pegou o telefone e ligou para seu amigo Paulinho que ele mesmo indicara para o posto de Gerente de Erreagá.
- Oi Paulinho... Como vai a seleção de candidatos?
- Vai bem. Já mandamos analisar a urina recolhida dos candidatos nos banheiros – sabe que sempre tomamos nossas providências para recolher a urina sem que percebam – e nenhum dos candidatos apresentou indícios de uso de drogas, nenhum tem HIV. Quanto a CPF, e outros indicadores, dois apresentaram problemas.
- E o Odílio?
- Limpo em tudo. Mas esse eu não recomendo. Pelo currículo vai pegar o seu lugar, mas você que sabe...
- Que é isso, Paulinho... Não se preocupe. Não confia no meu taco? Realmente estou interessado no Odílio. Pode nos servir muito bem. Quanto a pegar o meu cargo, nunca ninguém pegou cargo meu. Nós trabalhamos bem em conjunto, não? Se eu precisar já sabe o de costume: Derrubamos o cara... Pode deixar. Vê se me aprova esse cara. Falou?
Paulinho não estava no cargo à toa. Sabia perfeitamente quando ser eficiente e quando ser completamente ineficiente. O importante não era a empresa, mas a equipe, o grupo, a panela. Um dia chegaria a presidente da companhia nem que tivesse de derrubar o gerente geral, o vice-presidente ou até mesmo o Patranhos. Até já tinha um dossiê contra ele na casa de sua mãe para que ninguém o descobrisse. Vai que o Patranhos lhe pedisse a casa emprestada com alguma finalidade e viesse a descobrir? Sabia que Patranhos era um bom filho da puta que se disfarçava de amigo enquanto ele, Paulinho, lhe servisse as intenções.
- A entrevista quase final
Ilídio adentrou a sala do doutor Patranhos já com outra cara: A cara de quem o emprego era dele. Ninguém faz três entrevistas se não for para ser admitido. Essa sua postura o ajudaria no percurso final a caminho do costume de entrar no supermercado sem se preocupar com o quanto que vai custar o carrinho cheio, sem se incomodar se a gasolina sobe de preço, sem preocupar com a subida do dólar ou com que partido está no governo. Patranhos o recebeu com um sorriso de “já ganhou, o emprego é seu”. Então, depois dos “como vai” e “igualmente” Patranhos fez uma “confissão” a Odílio, ou pelo menos o tom da conversa era de íntimos confidentes:
- Sabe, Ilídio, em nossa empresa damos o maior valor à honestidade. Somo uma empresa que preza essa qualidade acima de todas. Crescemos por nosso próprio valor e não por comprarmos este ou aquele. Evidentemente que há furos nas leis e aproveitar-se desses furos não é ilegal. Isso é problema de quem faz as leis. Ajudas não se recusam porque são valiosas, mas sempre dentro das leis e dos furos, evidentemente. Gostaria que me dissesse algo de sua vida profissional onde esta postura tivesse ficado evidente. Certamente terá pelo menos um caso a contar.
Ilido olhou firme para o seu interlocutor. Sentiu que essa era a pergunta chave. Ou era admitido ou ficava por ali mesmo, com um tapinha nas costas e a promessa de que seu currículo seria considerado posteriormente, a futuro. Respondeu com toda a sua honestidade.
- Doutor Paranhos, como sabe, manter-se equilibrado entre os “poderes” dentro de uma empresa, é difícil. Se agradarmos a todos, a alguns teremos forçosamente de não agradar porque ainda que digam que sim, estarão em campos diferentes de interesses, nem sempre os da empresa. Vejo que fiz muito bem em procurar esta para me candidatar. Também preservo a moral e a ética como pontos fundamentais de um profissional, salvo quando há que agir de forma não tão nobre para preservar os interesses da empresa para a qual trabalhamos. Mas vou contar-lhe um caso, que dá mostras de meu hábito de sempre por a honestidade acima de tudo. Sempre digo lá em casa que, chova ou faça sol, se tiver que delatar quem age fora dos preceitos mínimos da moral e da ética, eu delato mesmo. Foi o caso de...
E contou um caso em que por sua delação tinha acabado com uma gangue que atuava numa empresa, processando todo o tipo de irregularidades. Mas acabara mal e todos, incluindo Ilídio, tinham sido demitidos sob todos os tipos de desculpas. Ilídio não sabia porque razão, mas Patranhos sabia. Sabia desse caso, porque o envolvimento incluía a sua própria empresa. A gangue trabalhava para o dono da empresa e Ilídio não sabia. A direção teve que demitir todos por terem sido descobertos, e a Ilídio porque era um perigo para as ações do grupo. Mas Patranhos não demonstrou que sabia. Pelo contrário, elogiou a boa índole de Ilídio. Disse-lhe que esperasse na sala de espera. Ilídio saiu satisfeito. Agora vinha a assinatura da carteira profissional. Bebeu uma água e esperou uma meia hora.
- A meia hora mais demorada de uma vida.
Patranhos correu para o telefone depois de se certificar que a porta estava fechada e ninguém entraria sem que lhe abrisse a porta.
- Alô, Carlinhos... Tenho aqui no meu escritório um cara que você deve conhecer. Eu já tinha ouvido falar dele, mas não o conhecia pessoalmente... É o Ilídio. Lembra?
- Ah... Lembro... Como não lembrar... Ele é muito bom. Excelente profissional, mas não pode saber dos negócios extra-escritório. Ele é capaz de arrebentar com uma empresa. Não se compra não se vende. Vai admitir?
- Estava pensando... Mas você sabe que ninguém precisa de profissional honesto, santinho, salvo em funções que não sejam estratégicas. Mas essas ele não pode aceitar. É muito competente e tem muita experiência. Gostaria de ajudá-lo, porque reconheço a competência, mas não vejo como.
- O lugar dele seria na Polícia Federal... hehehe.. Mas isso não nos interessaria, não é?
- Bom... Fica a dica. Se precisar dele, me avisa que eu o mando para você.
- Não, não... Nem precisa... Estou dispensando.
Depois que desligou o telefone Patranhos ainda meditou por uns cinco minutos. Depois chamou Ilídio.
- A entrevista final.
- Caro Ilídio – disse sorridente e afável – Tinha a intenção de admiti-lo, como deve ter percebido. Dependia apenas da confirmação de uma concorrência. Se ganhássemos estaria admitido. Mas infelizmente perdemos para uma concorrente que disputa conosco o mercado. Lamento, mas seu currículo não será esquecido. Na primeira oportunidade voltaremos a chamá-lo. Sinto muito mesmo.
Ilido disse-lhe apenas que não se preocupasse. O mercado era mesmo assim. Tudo tinha que concorrer para o sucesso de uma tentativa de emprego. Ficaria para a próxima. Desejou-lhe sucesso e saiu de cabeça erguida. Patranhos ainda murmurou em voz alta para a secretária:- Como está difícil encontrar alguém com o perfil que precisamos... Aí vai um chefe de família que precisava de um emprego, e apesar das qualificações há sempre um senão...
Com quarenta e cinco anos, Ilídio percebeu que estava velho e conhecido no mercado. Tinha tudo até para ser presidente de uma empresa honesta, mas este mercado estava difícil. Os tempos haviam mudado e ele também tinha que mudar. Não mais para subsistir no mercado de trabalho de seu ramo, mas para sobreviver. Quando chegou em casa, comunicou a mudança de vida à mulher e aos filhos. Eles entenderam. Foi assim que abandonaram a cidade e partiram para um lugar perto da natureza, perto de outra cidade.
Vivem bem sem o iate que nunca quiseram, sem o apartamento de cobertura no lugar mais caro da cidade que nunca desejaram, sem destruir os seus princípios que também nunca desejaram destruir.
Rui Rodrigues
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