Nas planícies do Oriente Médio, há cerca de sete mil anos atrás se cultivava o painço[1] , uma espécie de milho, a única conhecida. O pão dos egípcios e desse povo todo que constituía a humanidade, era feito de farinha de painço. Havia planícies cultivadas com este cereal por toda a China, Oriente Médio até o mar de Aral, e também no Egito e na Mesopotâmia. A humanidade não conhecia outro tipo de milho. Por entre os cultivos crescia a papoula, uma planta daninha que reduzia a produção de painço. Era preciso separar este joio[2] do painço. Depois veio o trigo e também do trigo era necessário separar o joio. Muito do joio era de papoulas que invadiam os campos.
Zarath nasceu perto do mar de Aral, numa vila com casas de adobe por volta do ano 1.700 AC. Seu pai deu-lhe um camelo (Ushtra) quando ele tinha ainda sete anos de idade. Era precoce, um menino diferente dos outros. Fraco, magro, tinha o olhar perdido nos astros pela noite, e durante o dia seu olhar continuava perdido no céu como se os pudesse ver mesmo com toda aquela luz ofuscante do Sol. Logo começaram a associar Zarath ao camelo que sempre o acompanhava[3]. Incompreendido em sua aldeia e em sua família, sem servir para nada de útil, logo percebeu que seu lugar tinha que ser longe da sociedade, das pessoas que viviam no lugar onde nascera. Aos vinte anos passou a viver numa caverna. Ali perto não havia propriedades cultivadas. Com a ajuda de seu camelo passou a plantar seu painço numa das margens do rio. Nunca comeu carne.
Zarath tinha que separar o joio - as papoulas - do painço em sua cultura, e o fazia no começo da primavera quando as plantas já têm estatura suficiente para que se possam diferenciar umas das outras. Já ouvira falar dos poderes da papoula, mas não a experimentara. Sabia dos sacerdotes e de seus pais que poderia ver os deuses que os sacerdotes também viam se os usasse, mas teria que estar preparado, porque somente o poderia fazer uma única vez em toda a sua vida. Se isso se tornasse um hábito seria tomado pelos demônios que jamais o largariam. Eram conselhos de sacerdotes egípcios, iranianos, judeus. Todos sabiam que o poder da papoula dominava a vontade dos mortais e os reduzia a um lixo que se deteriorava pelas esquinas das ruas, pelos campos, rejeitados por toda a sociedade.
Havia mais de dez anos que saíra de casa de seus pais para se confinar à caverna. Ficaria lá até que sua mãe o viesse buscar. Mas nunca voltou. Chegar aos trinta e cinco anos era difícil naqueles tempos. Zarath sabia disso. Ou se morria por armas de exércitos ou de bandidos, por febres, feridas que se transformavam em pústulas, por acidentes fatais. Era muito difícil chegar aos trinta e cinco anos, e embora alguns vivessem muito mais do que isso ficavam velhos, de cabelos brancos aos trinta. As águas de nascente pertenciam aos grandes senhores aquemênidas, e a água que se consumia era de poços que muitas vezes eram poluídos pelas fossas das casas, e trabalhava-se desde o nascer do dia até o chegar da noite. Os dias de verão eram os mais difíceis pelo calor do sol e pela duração dos dias, bem mais longos do que as noites, quando mais se trabalhava. Sobretudo, o que incomodava Zarath era a forma como o descriminavam por estar sempre com o pensamento longe da realidade. A sociedade e principalmente sua família não o aceitavam dessa forma. Queriam um Zarath concentrado na realidade, nas coisas da vida.
Em sua trigésima primavera resolveu comunicar-se com os deuses, como o faziam os sacerdotes. Buscava as razões da vida, algo que explicasse o mundo em que vivia, a justiça. Numa tarde, depois da hora do almoço, quando o Sol estava a pino, recolheu a seiva dos bulbos das papoulas nos quais fizera incisões dois dias atrás. Era uma seiva branca que logo ficara marrom. Depois enchera uma pequena taça de argila e levou um pedaço recolhido com o dedo à sua boca. Era um gosto amargo. Ficou olhando a sua seara verde, ainda palmilhada de papoulas, para lá das margens do rio onde se encontrava, perto da caverna. Esperava os deuses. Sentiu uma onda de felicidade, muito maior do que a que o vinho lhe costumava dar. E então o viu e ele lhe falou. Disse chamar-se Ahura Mazda. Era brilhante, como uma névoa branca em meio a brancos raios de luz. Mas não era nenhum dos deuses conhecidos. Este era diferente: Sorridente, paternal, transmitia confiança, tinha o límpido e firme olhar dos justos fortes. Só um deus poderoso poderia ser calmo, tranqüilo, sem se arrepender de sua obra. Viu-se então transportado para um lugar muito belo onde o esperavam sete seres magníficos. E lhe disse que tudo o que precisava saber estava dentro dele mesmo. Bastava olhar o mundo à sua volta, e perceber seus movimentos e suas razões. Então lhe indagou da razão de ter sido escolhido para essa conversa, e ouviu como resposta dos sete seres em coro que era porque Zarath tinha boas ações, bons pensamentos e boas palavras. Nos sete dias seguintes limpou todo o joio do painço. Jamais deixaria de plantar[4]. Então Zarath pegou em suas coisas, saiu da caverna e voltou para casa, para a aldeia. Vinte e dois [5]o seguiram, convencidos de suas palavras. Os outros queriam matá-lo por ter um novo deus e acharem que os seus se podiam melindrar. Nem repararam que Zarath usava como base os mesmos deuses que então faziam parte do panteão aquemênida, herdados dos indo-arianos, conforme o Rig Veda: os ahuras, do bem, e os daivas, do mal.
Perdeu dois anos tentando convencer Vishtaspas, rei da Báctria, no atual Afeganistão, a seguir a nova religião com o deus único que descobrira, Ahura Mazda, e nos anos seguintes toda a região a adotava. Por essa época já o chamavam de Zaratustra[6], o menino do camelo. Os gregos o chamavam de Zoroastro, o homem que contemplava as estrelas. Um livro sagrado foi escrito: O Avesta, do qual fazem parte 16 versos, os Gathas, a parte mais importante do livro. Como era comum a todos os sacerdotes, também Zoroastro precisava comunicar-se com Ahura Mazda. Aproveitava para fazê-lo na primavera, quando o joio das papoulas invadia as suas plantações de painço. E foi assim que começou a alargar o seu panteão, segundo o qual Ahura Mazda passou a ter deuses menores, exércitos de anjos no céu. Já não era único, porque não se bastava a si mesmo. Precisava de pequenos deuses, exércitos de anjos. Zoroastro acabara por admitir que havia algo neste mundo que dificultava a “vida” do deus único: Era o mal, Arimã, representado por uma entidade na forma de serpente que descobriu através de seus transes com a seiva da papoula, o joio do painço. Anjos guerreiros, depois de mais algumas mascadas de seiva de papoula se transformaram em pequenos deuses, os Amesha Spentas.
Se alguém quiser seguir os passos dos sacerdotes antigos, dos quais nem os pacíficos egípcios escaparam, basta ir num campo de trigo, milho, ou painço, pela primavera, extrair a seiva dos bulbos de papoulas, mascar e passar uma semana nisso. Verá coisas horripilantes mas também paraísos com sete virgens que esperam heróis, virgens gays que esperam heroínas, mancebos que esperam heróis e mancebos que esperam heroínas. Verá de tudo. Sacerdotes que fumavam tabaco descobriram Manitu; os que tomavam o Peyote, que dá ondas terríveis, macabras, descobriram que era o Sol o deus a adorar, ávido por corações humanos pulsantes depois de extraídos do peito dos fiéis. Quem fumava maconha descobriu os deuses dos Vedas.
A Torah judaica seria compilada e estabelecida quase mil anos depois do Avesta pela época do profeta Josias, e certamente deve ter sofrido influência, porque até então o povo judeu não tinha uma noção assente, solidificada, sobre o monoteísmo. O cristianismo, baseado na Torah e no monoteísmo, também evoluiu tal como o Zoroastrismo, para um panteão de santos e imagens. Enquanto viveu Zoroastro foi lançando sementes de seu painço. Somente vingaram as que foram lançadas no Irã, mas por pouco tempo. Outras religiões chegaram à região. Hoje persiste ainda em reduzidas comunidades da Turquia (zerviches) que ainda vêm Ahura Mazda quando dançam com sua roupa branca, rodopiando a cabeça e o saiote até ficarem em transe.
Rui Rodrigues.
[1] Sobre as características do painço, ver em http://vidaequilibrio.com.br/painco-conheca-os-beneficios-desse-cereal
[2] Nos tempos de Jesus também de separava o joio do trigo.Mas então se cultivava mais o trigo do que o painço.
[3] Zarath passou a ser conhecido como o “Zarath do camelo” ou Zaratustra. Quando os gregos souberam de sua existência o chamaram de Zoroastro, o menino que observava os astros.
[4] Os seguidores de Jesus, os apóstolos, largaram o trabalho que tinham. Zarath achava que se podia evangelizar e também cultivar o sustento. Uma atividade não prejudicava a outra.
[5] Jesus tinha 12 apóstolos. Boa parte era de familiares.
[6] Zaratustra foi casado duas vezes e teve vários filhos. Faleceu aos setenta e sete anos assassinado por um sacerdote.