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terça-feira, 3 de março de 2015

Três dias no Rio



 

Programei minha vida para não ficar preso a amanhãs. Não há nada que precise ser feito exatamente amanhã, embora não haja muitas folgas por causa das datas de compromissos inadiáveis. Apenas um por mês. Assim, em vez de sair amanhã, ficarei até mais tarde escrevendo sobre lembranças, mas não quaisquer lembranças. Refiro-me às que nos acompanham pela vida – e são essas as mais confiáveis – porque não houve paixões envolvidas que sempre nos confundem os pensamentos e o julgar sobre eles. Porque escrevo sobre isso? Talvez pela necessidade de compartir imagens com quem ler, na esperança de ajudar a que abram seus próprios baús e dele tirem as suas “fotos”. Relembrar tem a vantagem dos cheiros e do sentir dos ventos da chuva e do sol que as fotos verdadeiras não têm.

Dia primeiro.



Até os dezesseis anos não tinha visto nenhum cadáver pelas ruas de Lisboa. Minha avó falecera e não me deixaram ver o cadáver. Cheguei a ver alguns em fotografias de jornais e nuns panfletos que passavam pela população referentes às guerras coloniais em África mostrando grávidas com a barriga aberta e os fetos ainda pendentes do cordão umbilical, homens castrados, feridas mortais abertas, órgãos de soldados pendurados, enfileirados em cercas de arame farpado, cidadãos com cintos de corda de onde pendiam dedos cortados. As fotos impressionavam. Tudo isso impressionava, mas não fazia parar a respiração. Então desembarquei no Rio de Janeiro, de certa forma fugindo da guerra injusta, e ao olhar o cristo redentor a esperança de um mundo melhor. Sem dúvida que foi um mundo melhor. Não tenho a menor dúvida, mas quanto ao contato com a morte, passei a vê-la com muita freqüência. Foi uma mudança forte que me fez repensar a vida e torná-la mais precária, mais incerta. As imagens estavam disponíveis em jornais a que chamavam “imprensa marrom” e dizia-se que se espremêssemos o jornal sairia sangue. No fundo achei um exagero porque tudo à minha volta era de paz e tranqüilidade. Andar a pé pela cidade era confortável, em cada prédio antigo um monumento, os transportes eram um desfile de modas, todo mundo de terno e gravata, as moças com vestidos voluptuosos que ao mostrarem as pernas até os joelhos nos faziam sonhar com o que haveria deles para cima. E cheiravam bem. Asseadas, perfumadas, bem vestidas sem deverem nada a parisienses e lisboetas. Pelo contrário, eram muito mais atraentes, até na simpatia. Havia sempre um sorriso que podia ser maroto, convidativo ou simplesmente um modo usual dos lábios.


Um dia não encontramos bonde para descermos até o centro da cidade. Tivemos informação de um desastre que impedia a passagem de veículos. Quando chegamos perto da Presidente Vargas vimos um bonde parado e a uns dois paços um sujeito com a cabeça quebrada, irremediavelmente morto, o sangue enchendo as calhas de um dos trilhos. É a cor pálida que impressiona. Ainda não o tinham coberto com jornais nem colocado velas acesas do lado. Apanhamos ônibus na Presidente Vargas. Depois disso mais um cadáver, passados dias. Era do irmão do dono do açougue que ficava quase na esquina do quarteirão. Esse estava coberto de jornais e tinha velas acesas do lado. Um sujeito com quem ele discutira tinha pulado o balcão e o esfaqueou. Mesmo esfaqueado saiu para a rua para tentar alcançar o assassino, mas caiu na calçada. E mais tarde ainda um bicheiro levou oito tiros de 38 de um desafeto. Dizem que foi por causa de mulher ou de disputa de ponto. Ele tinha um ponto de bicho na esquina da Alexandre Mackenzie com a Avenida Marechal Floriano. Mas lá estava de terno branco, gravata vermelha e chapéu panamá, encostado a uma loja de roupas bem na esquina, dando os últimos suspiros. 

Ouvi ainda a sirene da ambulância que chegava apressada. Meses depois ele reapareceu no ponto. Passei a achar que a vida também é uma questão de sorte, mas é bom não ficar envolvido em confusões e procurar sempre passar desapercebido das multidões. E, sobretudo, ter muita sorte. A única vez que quase desmaiei foi quando uma amiga da Federal Fluminense me convidou para assistir a uma aula com um cadáver. Primeiro foi a cor pálida e o corpo aberto, depois o cheiro de formol, o calor da sala, e quando me começou a faltar o ar saí da sala para não passar vergonha. Devo ter perdido um bom casamento. Os últimos que vi, mortos ao vivo, já tem uns 30 anos quando uma Kombi bateu de frente com um muro a caminho das praias de Niterói. Tenho conseguido me manter afastado.

Segundo dia



Sentir o variável amor pelo pai como naquele dia em me despedi dele, de minha meia-irmã e de minha madrasta quando viajou para Portugal, amando-o por me deixar sozinho em casa, mas alegre por me ver livre dele e dos outros dois. Já tinha combinado com minha namorada que ela passaria uns dias lá em casa. Foi uma lua de mel fantástica apesar dele me dizer: - Porta-te bem e não faças besteiras. Cuida da bem da casa! Ele costumava franzir o cenho e as comissuras dos lábios afrouxavam instantaneamente para baixo quando falava sério. Copiei-lhe o rito sabe deus como, porque minha alegria quase saía pelos poros. Foi nesse dia que até pensei em ser ator de teatro, mas desisti por gostar muito de ser quem sou e como sou. Nesse dia o Brasil jogava pela Copa do Mundo de 1970 contra a Itália e o jogo passava numa TV instalada no hall do aeroporto do Galeão, mas passei batido. Quando o avião levantou vôo saí até uma pequena obra dos estacionamentos da qual era responsável como estagiário, dei uma explicação para o encarregado, passei mais uma meia hora abraçado com os relatórios e saí voando para apanhar a namorada. 


A cama de casal de meu pai nunca tinha balançado tanto. Tenho que agradecer ao colchão que era de molas e que ajudou bastante. Acabo de olhar na Net e conferi o dia: 23 de junho, uma terça feira, dia de sol no Rio e em minha alma. Eu, a namorada e todo o Brasil éramos campeões mundiais por quatro a um. Não posso esquecer o colchão de molas arfantes nem a possibilidade de termos perdido por sete a um. Isto jamais passaria pela cabeça de alguém normal.

Terceiro dia.


Foi uma admiração no início. Costumava ir lá de vez em quando em finais de semana levando as meninas para passear, nos tempos em que se parava o carro na praça Saens Peña, se abria a porta e as meninas entravam para passear. Íamos ao Cristo, almoçávamos, passávamos o dia juntos. São Conrado era o lugar mais habitual quando tinha apenas um restaurante, uma capela e um lugar com barracas de diversão. Nem uma casa mais, nem um prédio. Só vegetação marinha, areias e praia, montanhas ao fundo. A voz de Nara Leão era meio de falsete, mas a bossa nova e seus olhos límpidos ajudavam a compor o clima. João Gilberto, Tom Jobim, Luis Gonzaga, Maysa para as noites de dor de cotovelo, e um sujeito hilário que cantava “eu não sou cachorro não” nos faziam sentir no Rio ainda que estivéssemos em Porto Alegre. Rio de Janeiro, mais que uma cidade, era um sentimento nacional. 


Todo o brasileiro se sentia carioca. Coisa melhor que parar no Bracarense para tomar uns chopes e comer uns pastéis de bacalhau? Ou no Caneco 70? Quem sabe no Garota de Ipanema ou no balcão da Pizzaria Guanabara enquanto se esperava pelo frango assado na Pastelaria Rio-Lisboa... Bar do Luiz no centro da cidade... Chegar em casa, tomar uma ducha e sentir, ao vestir a camisa, que as costas estão um pouco ardidas do sol. Família, os filhos, semana de trabalho que valia a pena, e fins de semana livres para se ir onde se quisesse. E as crianças. Dar-lhes alegrias e responsabilidades, de preferência alegria com responsabilidade e responsabilidade com alegria, como cozinhar juntos e saborear os resultados. Tudo em meio a uma paisagem deslumbrante compartilhada com amigos de norte a sul. E não era caro. 



A economia progredia, ninguém reclamava de preço de ônibus, que eram sempre modernizados, e que até exportávamos para o exterior. Tempos em que técnicos e profissionais ganhavam bem e políticos mais ou menos, embalados por canções que embalavam o coração, sexo era conseqüência, não o objetivo. Ninguém assaltava caixas de banco. Só assaltavam bancos e raptavam embaixadores, mas isso era a guerrilha estúpida dos que se faziam rejeitar pela população para justificarem sua agressividade contra a classe média e o conhecimento por mérito.  A Santa Casa era uma casa santa, os hospitais funcionavam a todo o vapor, não faltavam medicamentos. A Petrobrás era o orgulho nacional. Governos faziam casas populares e até mudavam populações que viviam em barracos para essas novas casas e não cobravam nada. O “terror” daqueles “anos de chumbo” só incomodava terroristas. Pobres sempre os houve e haverá. Há que cuidar deles na medida da riqueza do Rio de Janeiro e da nação. Quanto mais ricos formos, de maior numero de desvalidos poderemos cuidar.

Imaginem o quarto dia...


®   Rui Rodrigues   

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