Ensaio sobre a cegueira - O cego que recuperou a visão
(Baseado numa história real)
(Baseado numa história real)
Aos sete anos Paulo foi surpreendido por uma exclamação:
- Maria de Lurdes! Havia alguma coisa no correio? Estou esperando umas correspondências. (Era o pai dele indagando da mãe que tinha ido à caixa do correio Moravam num quarto andar e a caixa ficava no hall de entrada, do lado esquerdo antes das escadarias de pedra mármore).
- Não!... Nada no correio hoje!
Tanto o pai quanto Paulo tinham visto que Maria de Lurdes guardava algo no regaço, entre os fartos e lindos peitos.
- Queres me fazer uma surpresa, não é? Ora mostra lá o que escondeste no peito... Não adianta porque eu vi!
Paulo assistiu ao que parecia ser uma brincadeira, uma discussão sem maiores discussões, até o final, quando a carta que Maria de Lurdes relutantemente queria ser preservada, foi lida pelo pai em voz alta. Era a carta de um amante da mãe contando de sua saudade dos momentos em que tinham passado juntos, descrevendo o sexo que haviam mantido. Fora numa casa de veraneio que ambos mantinham numa praia situada a 40 km de sua casa na cidade. Paulo viu seu lar se desmoronar num repente. Nesse mesmo dia, pela noite, depois de uns telefonemas, seu pai, homem proeminente da administração pública, abandonou o lar. Paulo sentiu uns lapsos de visão que foram se agravando ao largo dos meses seguintes. Aos nove anos tinha perdido a visão por completo. Naquela década de final dos anos cinqüenta, o lugar mais famoso para operações que tentavam reabilitar a visão se processavam na Bélgica. Paulo foi lá por duas vezes, e voltou desenganado.
Paulo tinha muitos amigos da mesma idade. Alguns deles se dispunham a acompanhá-lo em seus passeios por pura amizade e compreensão do que era perder a visão. Aprendeu Braille numa escola adequada e recebia livros de porte avantajado escritos em Braille que consumia rapidamente. Seus amigos aprenderam como se guiava em casa, como percebia que havia gente na sala, ao seu redor na rua, e como entendia e percebia os cheiros, os sons. Suas narinas se haviam aperfeiçoado no faro, seus ouvidos eram quase capazes de ouvir ultra-sons. Seu tato se ampliara à percepção de curvas da pele, dos objetos. A bengala servia apenas para afastar de seu caminho quem estivesse na frente e se desviar de obstáculos como postes, ou descer ou subir meio fios e degraus. Fazia quase tudo sozinho, comia, bebia, servia-se de vasilhames para beber sem entornar no copo. Os dedos controlavam o recipiente, a dosagem, o nível do liquido dentro do copo.
Evidentemente, nunca casou, embora não lhe faltassem mulheres. Inteligente, chegou a ter duas irmãs, depois de ter explicado aos pais delas qual era a situação: As duas gostavam dele, ele gostava das duas, e transavam juntos. Os três transavam juntos.
De vez em quando se lembrava da mãe que passou a morar num aparamento ao lado do seu, e jamais a perturbou por causa de seus companheiros. Maria de Lurdes tinha compulsão por sexo e casara muito nova, com dezesseis anos apenas. Para Maria de Lurdes, transar era uma questão diária de sobrevivência, mesmo agora com seus 63 anos. Não importava se o companheiro era um mecânico de automóveis, um funcionário público, um amigo juvenil do filho mesmo, daqueles mais velhos, mais espigados, mais experientes, mais soltos do controle dos pais. Maria de Lurdes era muito linda, dotada de um lindo corpo e suas roupas eram sensuais. Parecia-se com Greta Garbo.
Nunca soube como, mas um dia a visão voltou e já estava com 47 anos. Não era religioso não freqüentava igrejas, e tanto quanto sabia ninguém já rezava pelo retorno de sua visão. Os santos já não faziam milagres como antigamente, quando a crença era mais forte, e nos dias atuais, já não se fabricam santos, talvez porque o sofrimento dos santos se estendeu a tanta gente que já nem se reconhece o mérito do sofrimento para se ser santo e sair por aí fazendo milagres. Quando a visão voltou, não contou para ninguém. Nem para a mãe. O mundo que era quase perfeito, tirando o incidente entre a mãe e o pai, anos atrás, desmoronou. Chegou a achar que era melhor ter ficado sem visão. O que viu foi um retorno do passado, fruto de circunstâncias. Aconteceu justamente aos 48 anos quando resolveu casar com uma das irmãs com quem dividia o leito dos prazeres e que julgava conhecer tão bem.
Paulo atualizava-se como podia, por comentários com os amigos, pelas notícias da TV, ouvia o que se passava pelo que diziam pelas ruas. Nunca vira a cena da garota fugindo nua, queimada por napalm, por uma estrada do Vietnam nem cenas da queda do muro de Berlim, nem como as pseudodemocracias socialistas comunistas tinham virado a casaca e todos haviam passado para o capitalismo, este cada vez mais feroz, fazendo tantos ou mais estragos dos que o comunismo havia feito. Não viu nada disso. Apenas imaginou, mas logo que recuperou a visão entrou na Internet e as imagens eram tal como havia imaginado. Mas não estava preparado para ver num site pornográfico as belas imagens de sua amada esposa, nua, transando com vários companheiros de estúdio: Era uma atriz pornô, de renomada fama no meio dos internautas. Uma fama adquirida ao longo de quase cinco anos. Pior ainda, seu empenho no set de filmagem era muito mais ativo do que agora demonstrava no leito nupcial. Lembrava-lhe quando começaram a namorar e dividia o leito com a irmã.
Quando comentou o assunto com dois ou três amigos de infância que haviam sobrado em sua vida, percebeu que não era um defeito de sua esposa. O mundo havia mudado muito e ele não percebera que tanto homens quanto mulheres sempre haviam sido assim
Percebeu e constatou, isso sim, que não era apenas ele que ficara cego por anos.
Rui Rodrigues
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