1- Os primeiros e últimos passos na Igreja. Houve tempo em que me levaram na Igreja, um templo com gente cantando, gente parecendo feliz, os pobres recebiam a sopa de inverno na porta das traseiras, os meninos mais sensíveis estavam sempre sob o cuidado e atenção dos padres, e me confessei por várias vezes até perceber que Deus deveria estar de saco cheio de ouvir sempre a minha mesma confissão. E me perguntava, sempre, se fazia sozinho ou acompanhado, provavelmente dos outros meninos que confessavam o mesmo... Não por isso, mas também, deduzi que Deus era surdo e deixei de frequentar o recinto de auto-ajuda coletivo. Já que estávamos sós neste mundo, teria que me virar para sobreviver. Mas estava muito claro que se escondiam coisas, que todos sabiam que se escondiam coisas, e que havia grupos de pessoas que acreditavam em coisas de pessoas que escondiam coisas. Os mendigos da sopa sabiam. Todos os demais pareciam não saber. Fingiam. Ainda fingem até hoje que não sabem das coisas.
2- Entrando e saindo da inocência...
A inocência pode ser verdadeira ou falsa. A verdadeira é usada por crianças até os 3 anos quando muito. A falsa por todos, mas a que mais me chama a atenção é a das mulheres que gemem tresloucadamente durante o sexo e políticos que usam palavras suaves para representarem papéis de artistas que foram eleitos exatamente porque sabem como representar em artes cênicas. A maioria dos nenéns nascem assim. Perdi minhas inocências de muitas formas e ao longo de diversos tempos, e mesmo hoje, mas sempre comparando o que faziam com o que me diziam para eu fazer ou não fazer. Se não houvessem leis a obedecer seriamos todos bandidos legais sem culpa. Mas então, se esse dia chegasse, não haveria heróis de novelas, poetas, salvadores da Pátria, contraventores, contrabandistas ou inconfidentes... Viveríamos no Império do Brasil, Portugal e Algarves, como se África não existisse e o "mapa cor-de-rosa" tivesse sido esquecido. A inocência se perde quando o santuário de onde filhos nascem é invadido por penetradores que não se preocupam com a inocência dos que nascem sem saber quem os fez, porque buscam gozo. E os que buscam apenas gozo continuam gozando depois que os filhos nascem seja com quem for. Desculpas arranjam-se, provocam-se. Apenas gozo, que pode ser obtido em processos que nem valem confissões. E assim nasce a maioria das crianças "fabricadas" por puro gozo apressado e inconsequente. As Igrejas são ricas porque riqueza atrai e pobreza afasta. Jesus pregava nas ruas, nas montanhas para atrair uns e outros. Nada de usar ouro, mas sempre pão e vinho que ninguém por ali costumava cozinhar. Filavam almoços e jantas.
3- Os sons que ecoam da montanha.
O chiar das rodas do carro de bois que viviam cheios de baba e que ecoava ao entardecer de vez em quando vindo dos montes ao redor de Fornelos era do senhor Fraga. Eram diferentes de outros que também chiavam e não eram tantos assim. Três, quatro... Carro apenas um. O som do motor era diferente do do táxi que volta e meia trazia alguém com malas para a casa dos outros. Depois havia os motores das motos. Mais que de carros de bois. Alimentar bois pra transportar coisas dava mais trabalho que encher o tanque de gasolina que era muito mais rápido. E havia os sons da própria aldeia, sempre de pequenos como eu brincando em algazarras, e de mães chamando por eles. A noite engolia os sons e os fumos das chaminés. Dentro de casa tudo durava mais um pouco, mas os sons eram diferentes e deixavam mensagens mesmo quando as pessoas não falavam. Mesmo até quando não me falavam diretamente. Se eu fazia alguma travessura ficava esperando que me chamassem a atenção. Percebi que algumas me permitiam, fazendo que não viam. A noção de limites foi ficando clara para mim dia a dia. Muito cedo percebi os limites e os incorporei. Minha vida passou a ficar muito fácil. Eu sabia quais podiam ser ultrapassados e com que frequência para viver em paz. Também aprendi a arreganhar os dentes e a franzir as sobrancelhas para que os dos outros não colidissem com os meus. Havia muitos tipos de "outros" neste mundo. Parecia que cada um era sempre um "outro", que de "eu", que eu soubesse, havia apenas eu mesmo. Só!... Na realidade eu estava só!
Os sons que ecoavam da montanha nunca pararam de ecoar. Trazem sabores de migas de broa de milho em malga de leite adoçado de cabra. Onde andarão as duas meninas que me mostraram a diferença debaixo de uma parreira... E ainda sou inocente em muitas coisas desta vida...
Rui Rodrigues
2- Entrando e saindo da inocência...
A inocência pode ser verdadeira ou falsa. A verdadeira é usada por crianças até os 3 anos quando muito. A falsa por todos, mas a que mais me chama a atenção é a das mulheres que gemem tresloucadamente durante o sexo e políticos que usam palavras suaves para representarem papéis de artistas que foram eleitos exatamente porque sabem como representar em artes cênicas. A maioria dos nenéns nascem assim. Perdi minhas inocências de muitas formas e ao longo de diversos tempos, e mesmo hoje, mas sempre comparando o que faziam com o que me diziam para eu fazer ou não fazer. Se não houvessem leis a obedecer seriamos todos bandidos legais sem culpa. Mas então, se esse dia chegasse, não haveria heróis de novelas, poetas, salvadores da Pátria, contraventores, contrabandistas ou inconfidentes... Viveríamos no Império do Brasil, Portugal e Algarves, como se África não existisse e o "mapa cor-de-rosa" tivesse sido esquecido. A inocência se perde quando o santuário de onde filhos nascem é invadido por penetradores que não se preocupam com a inocência dos que nascem sem saber quem os fez, porque buscam gozo. E os que buscam apenas gozo continuam gozando depois que os filhos nascem seja com quem for. Desculpas arranjam-se, provocam-se. Apenas gozo, que pode ser obtido em processos que nem valem confissões. E assim nasce a maioria das crianças "fabricadas" por puro gozo apressado e inconsequente. As Igrejas são ricas porque riqueza atrai e pobreza afasta. Jesus pregava nas ruas, nas montanhas para atrair uns e outros. Nada de usar ouro, mas sempre pão e vinho que ninguém por ali costumava cozinhar. Filavam almoços e jantas.
3- Os sons que ecoam da montanha.
O chiar das rodas do carro de bois que viviam cheios de baba e que ecoava ao entardecer de vez em quando vindo dos montes ao redor de Fornelos era do senhor Fraga. Eram diferentes de outros que também chiavam e não eram tantos assim. Três, quatro... Carro apenas um. O som do motor era diferente do do táxi que volta e meia trazia alguém com malas para a casa dos outros. Depois havia os motores das motos. Mais que de carros de bois. Alimentar bois pra transportar coisas dava mais trabalho que encher o tanque de gasolina que era muito mais rápido. E havia os sons da própria aldeia, sempre de pequenos como eu brincando em algazarras, e de mães chamando por eles. A noite engolia os sons e os fumos das chaminés. Dentro de casa tudo durava mais um pouco, mas os sons eram diferentes e deixavam mensagens mesmo quando as pessoas não falavam. Mesmo até quando não me falavam diretamente. Se eu fazia alguma travessura ficava esperando que me chamassem a atenção. Percebi que algumas me permitiam, fazendo que não viam. A noção de limites foi ficando clara para mim dia a dia. Muito cedo percebi os limites e os incorporei. Minha vida passou a ficar muito fácil. Eu sabia quais podiam ser ultrapassados e com que frequência para viver em paz. Também aprendi a arreganhar os dentes e a franzir as sobrancelhas para que os dos outros não colidissem com os meus. Havia muitos tipos de "outros" neste mundo. Parecia que cada um era sempre um "outro", que de "eu", que eu soubesse, havia apenas eu mesmo. Só!... Na realidade eu estava só!
Os sons que ecoavam da montanha nunca pararam de ecoar. Trazem sabores de migas de broa de milho em malga de leite adoçado de cabra. Onde andarão as duas meninas que me mostraram a diferença debaixo de uma parreira... E ainda sou inocente em muitas coisas desta vida...
Rui Rodrigues