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terça-feira, 8 de setembro de 2015

O caderno do senhor Kent.


Nunca se ouvira falar de Johnny Crisp Lend, na verdade Johnny Lend. Crisp era o apelido por ter a pele seca como couro de cobra, a barba dura que ao cortar fazia barulho como estalar de batata frita quando amassada, e ter tão bom ouvido que podia perceber uma cobra rastejando a mais de dez metros de distância. Foi no Bar do Chopp Grátis – “Free Beer Bar” – um posto de troca de cavalos de diligências que ficamos sabendo de sua existência. Um dia, pelos idos de 1860, Sally O. Burke entrou no bar acompanhada de Preston “Cake” Bernardine, tomou uma garrafa inteira de whisky e contou a história. Johnny saiu da Carolina do Norte em 1841, atravessou o Tennessee, Arkansas, Oklahoma, Novo México e Arizona, e só conseguiu chegar á Califórnia [1]em 1855. O caminho foi-lhe ficando mais comprido a cada dia. Fez essa proeza de atravessar os Estados Unidos da América do Norte a pé, a cavalo, de carroça, deitado e algemado. Mas sempre foi um homem livre. Eis sua breve e desconhecida história. Quem contou foi Sally e Preston.Sim senhora... Johnny Lend tinha sido seu amante. O melhor segundo ela. Ele tinha sido um cara de sorte por toda a vida até aparecer todo o seu azar até então represado, num dia só, num minuto só, talvez num segundo só se seu relógio tivesse ponteiros de segundo. Isso foi no segundo qüinquagésimo nono, do quadragésimo minuto da décima sétima hora do dia 13 de agosto de 1865. Ele nunca soube disso. O relógio marcaria 05:40:59 PM. Preston Cake Bernardine sabia.Por aquela época, o dono do “Free Beer Bar” era o meu ta-tará-tatáravô, senhor Kent, que anotou tudo em seu caderno junto com algumas fotos. Resolvi contar hoje.


Naquele dia o vento soprava forte, de levantar poeira e encobrir o sol, tempo extremamente seco. Construíam-se linhas férreas por todos os Estados Unidos da América. A Wells Fargo, uma companhia de diligências, tinha iniciado seus serviços havia poucos anos. Havia guerras com tribos índias por todo o território. A União comprava territórios e conquistava outros. 
À beira da estrada poeirenta por onde passavam as diligências ficava o “Free Beer Bar” cujo dono, o senhor Kent, costumava sempre oferecer grátis a ultima cerveja, mas só depois de pagarem a conta desde que fosse superior a dois dólares. Ele já se tinha sentado em sua cadeira de balanço, no lado do Bar protegido do vento mais forte, que levantava rodamoinhos, quando sentiu os passos do casal que se alojara na véspera, descendo as escadas para o saloon. Então entrou para lhes dar atendimento. Sentou-se com eles á mesa.


Preston Cake meteu a mão em seu colete preto, puxou um pacote de tabaco de mascar, tirou uma dedada, enfiou na boca ajeitando com o dedo indicador e deixou que ficasse entre a bochecha esquerda e os dentes por um bom tempo antes de dar a primeira cusparada no piso do bar. Segundo ele, era tabaco do bom, da Virgínia, mas começou a ficar tão alegre que todos suspeitamos que tinha mais alguma coisa (estava escrito assim mesmo no caderno do meu tatá-taravô, o senhor Kent). Ofereceu-lhe um copo de whisky bem cheio, mas Preston apontando com o dedo para a bochecha cheia de tabaco ou que quer que fosse, com a outra mão fez um gesto largo horizontal, negando a oferta. 
Aquilo não era uma ofensa.  Sally em contrapartida bebia pelo gargalo. Tinham chegado pela manhã, empoeirados, suados, montando bons cavalos, e haviam pagado adiantado com dólares de ouro “double eagle”[2].Sally era magra como um pingo de chuva do Novo México, onde a chuva já chega quase seca ao solo, depois de despencar lá de cima, de milhares de milhas de altura. Era interessante Miss Sally. Por vezes parecia ter carnes apetitosas, dependendo por onde se lhe olhasse o corpo proporcional. Sua magreza era falsa, e era bonita, embora parecesse daquelas mulheres de Saloon de N. Orleans.


Abusava das rendas e tinha uma fita preta no pescoço. O senhor Kent por essa época ainda podia desejar uma bela mulher e já beirava os setenta anos.Preston Cake era o típico jogador elegante, de mãos finas, casaco aprumado, botas de couro trabalhado, e não dava importância aos olhares do senhor Kent para a linda Sally. Preston o julgaria velho demais. Foi quando Sally se referiu a Johnny Crisp Lend, dizendo que o amava, que era companheiro de Preston e que falecera.
O senhor Kent perguntou a Sally porque amava tanto o Johnny Lend. Disse-lhe que era por sua conversa, a história de sua vida, e porque o achava muito triste do tipo de sujeito calado e muito só. E antes que o senhor Kent perguntasse, ela foi adiantando: - Não é que ele tivesse a coisa daquelas enormes, mas sabia usar tudo que tinha para agradar. Dava atenção, falava coisas lindas no meu ouvido. Mas vou lhe contar a história dele conforme me contou. Quer ouvir? O senhor Kent assentiu com a cabeça e apanhou mais uma garrafa de whisky. Não tinha muita coisa para fazer. Preston já tinha deixado uma poça de cuspe meio marrom, meio cor de whisky, pastosa, no chão do bar. O senhor Kent ofereceu-lhe então um copo. Ele aceitou. Cuspiu o tabaco que tinha na boca dentro do copo e começou a tomar seu whisky. O senhor Kent cheirava rapé, aquele pó de tabaco de colocar no nariz e que fazia espirrar muito, e nunca entendeu como se podia mascar tabaco e tomar whisky ao mesmo tempo. O senhor Kent escreveu em seu caderno que Sally tomava whisky na garrafa para não se enganar com os copos do senhor Preston Cake Bernardine, e beber coisa errada. Mas Sally já estava contando a estória.  

- Contou-me o Johnny Crisp Lend, que quando saiu da Carolina do Norte, terras de Cherokees, o presidente dos EUA ainda era o John Tyler. Crisp tinha saído para lá em 1841 por causa da corrida do ouro, mas ela terminou em 1850. Quando chegou em 1855, foi uma grande decepção. Deu azar.
Crisp fugiu de Charlotte ao que parece porque não lhe quiseram pagar o que deviam na plantação de algodão onde trabalhava. Foi despedido e na noite seguinte entrou no escritório da companhia e tirou exatamente o que lhe deviam. Não foi muito esperto, porque o contador da companhia associou o volume de dinheiro roubado ao valor total reclamado por Crisp. Então o Xerife de Charlotte reuniu uma patrulha de civis a cavalo e partiram no encalço do homem. Acharam que não poderia ir muito longe, mas Crisp era muito esperto, e tinha amigos.
- O melhor amigo dele era eu, senhor kent! – Disse Preston. Fugimos juntos desde Charlotte. E continuou: Aliás, ajudei-o a assaltar os escritórios da companhia. Naquela noite levamos dois cavalos encilhados com armas e roupas, dois cantis de água e cavalgamos a noite toda, e chegamos aos Montes Apalaches. Logo na saída resolvemos cavalgar, um de cada lado da estrada das diligências até passarmos pelas primeiras duas estações. Assim se alguém da "Posse" - aquele grupo que nos perseguiria - perguntasse, não teriam visto ninguém passar parecido conosco. Depois da segunda estação passamos a usar a estrada que era mais conveniente para as montarias. Encontramos manadas de búfalos. Da costa levamos sal. Salgamos uma porção de carne de búfalo e tocamos para Nashville, passando pela reserva Cherokee. Não tivemos problemas com eles porque quando fomos abordados por um grupo de cinco cherokees que nos interceptaram, dissemos que éramos desertores. Então nos perguntaram porque tínhamos desertado. Dissemos que tínhamos que avisar as nações dos Arapaho, Cheyenees e Sioux no Arkansas, porque o exército ia atacá-los. Deixaram-nos passar e ainda nos deram uma cota de tabaco e duas mantas de pele de urso em troca de dois pacotes de sal. Ainda nos interrogaram antes de sairmos. 

Apontaram para o John Crisp e perguntaram se era meu escravo...
- Escravo? Como escravo? Os EUA nunca tiveram escravos brancos...Perguntou-lhe o senhor Kent.
- Ele não era branco, senhor Kent. Disse Sally. Crisp era negro! Ele decidiu vir para a Califórnia porque soube que aqui havia gente com pele mais escura, e que eram mais compreensivos com os negros. Foi por isso que veio para cá. E prosseguiu: - Johnny Crisp Lend e esse sujeito aí, o Preston, pretendiam chegar a São Francisco em um par de meses desde que fugiram de Charlotte, mas sofreram atrasos porque as pessoas só criam dificuldades. Ninguém aceita qualquer um em seu meio. Só as igrejas, mas isso é porque cobram os dízimos e lhes interessa. Sofreram muito. No Tennessee o xerife de Nashville os interpelou quando tomavam um drinque num bar e disse pra saírem da cidade no dia seguinte porque não foi com a cara deles. Como é que foi, mesmo, Preston? Conta você...



- Dia seguinte para nós era depois que amanhecesse até que a noite chegasse, mas o xerife nos mandou dois delegados com estrela no peito para nos tirar da cama porque já tinha passado da meia noite e já era “dia seguinte”... Nem nos tínhamos deitado e estávamos ainda vestidos. Entendemos logo que o xerife queria nos encrencar e dissemos para nos deixarem em paz. Então um deles levou a mão á arma enquanto o outro já estava com as mãos ocupadas empunhando algemas. 


Já encrencados e com mais uma encrenca á vista pela frente, olhamos um para o outro e sacamos as nossas. O delegado bandido tombou ali mesmo de arma na mão. Tiramos a arma do outro, trancamo-lo no quarto e abalamos a cavalo com intenção de irmos para o Missouri, mas fomos levados para o Arkansas á força.
- E porquê? Perguntou o senhor Kent.  
- Por bobagem, disse Sally. Resolveram jogar pôker num bar de Dyersburg, no Tennessee, e ganharam muito dinheiro, mas se enganaram no caminho e foram parar em Blytheville no Arkansas. Não conseguiram explicar para o Xerife de lá como tinham tanto dinheiro, e porque o Preston tinha um escravo. Foi o modo de explicar por que ele estava acompanhado de um negro. Tinham até falsificado um título de propriedade. O Xerife disse que ia investigar, mas tirou-lhes tudo que ficou sob custódia num cofre no escritório do Xerife que era também comerciante. Ele tinha um saloon na cidade e só trabalhava quando o chamavam. No segundo dia em que estavam presos, os dois se aproveitaram de uma bobeada do carcereiro que tinha o péssimo hábito de beber e conseguiram sair da cela. Arrombaram o cofre que não era nada seguro, mas não havia nada dentro dele. O Xerife os enganara. 
Na fuga tiveram que embarcar num vagão de carga vazio. Estavam duros.Quando viram umas grandes plantações de tabaco, aproveitaram e saltaram do trem. Ficaram por lá empregados durante mais de ano até conseguirem dinheiro para seguir viagem.Não se fala muito nisso, mas há alguns índios descendentes de negros com índios. Crisp teve uma filha com uma índia Cherokee. Ela morreu num ataque de cavalaria.


- Mas trabalhando em plantação não se ganhava muito...- Interrompeu o senhor Kent.
- Não - respondeu Preston – Mas tenho métodos seguros de ganhar no pôquer quando os outros jogadores não são muito violentos. Sempre observo quem está na mesa. Partimos então a cavalo porque nem havia a companhia de diligências Wells Fargo [3]passamos por Little Rock e fomos até Fort Smith na fronteira com Oklahoma. Não deveríamos ter ido. Os índios Creek e Cherokee, dentre outras tribos, atacaram o forte logo depois que chegamos lá. 
- E da guerra contra o México, vocês não participaram? Perguntou o senhor Kent.
- Oh.. Sim... A guerra terminou em 1848 se é que terminou mesmo até hoje. Por essa altura, em 1846, quando começou, andávamos já por Oklahoma, na fronteira com o Novo México. Participamos de batalhas sangrentas. Os mortos ficaram lá, enterrados, e ninguém mais sabe quem foram. Tivemos que perseguir e prender um batalhão inteiro de irlandeses desertores que apoiavam o México por serem católicos e não protestantes.

Eles achavam que nós éramos muito violentos com o tratamento aos mexicanos por sermos protestantes. Formaram um batalhão o "San Patricio Batallon". Conseguimos prender 16. Em setembro de 1847 o exército enforcou esses dezesseis por traição á pátria. Foi uma satisfação politica porque o pessoal não gostava muito dos imigrantes irlandeses. Vocês não sabem o que é ver gente estrebuchando na ponta da corda desesperados para se aguentarem enquanto os músculos ainda estão fortes e conseguem respirar, mas o peso do corpo vai apertando o nó da corda e com a perda da força, ainda mais. Os olhos ficam esbugalhados, o pênis fica grande e duro. Escolheram o Johnny para abrir os alçapões da forca e a mim para lhes passar os laços á volta do pescoço um por um. 
Fizemos isso por obediência e não por prazer. Foi por isso que sempre fugimos desde Charlotte na Carolina do Norte até São Francisco na Califórnia. A lei é muito cega. Produz "foras da lei" e depois os persegue.
- O senhor é religioso, senhor Preston?Perguntou-lhe o senhor Kent.
- A pergunta que sempre se fazia o Jonnhy Lend, senhor Kent, era esta: Se um Deus criou a humanidade e a protege, pode ele proteger apenas uma parte dela? Claro que não. Não seria justo, e um deus tem que ser justo. Por outro lado, são tantos os deuses que se adoram, e até o mesmo de forma tão diferente, que teremos que nos perguntar qual a razão verdadeira dos religiosos.Eles passam bem de vida, sempre. É como se deus os ajudasse e aos fiéis não.
- A vida deles até chegarem a São Francisco foi toda assim. Em 1855 finalmente chegaram lá. Foi quando os conheci - disse Sally – Preston até foi eleito xerife e Crisp seu ajudante, mas deviam um favor a quem o elegera:Um Grande criador de gado que os queria usar para se apropriar de terras de outros criadores mais fracos. Um dia se rebelaram e mataram o sujeito e os dois filhos no meio da rua em frente ao saloon em duelo, porque resistiram á prisão. 


O senhor Kent tem uma porção de anotações em seu caderno sobre este trio que eram quatro. Havia também a mulher do Preston Cake. Nem contei sobre aquela vez em que, para encontrá-la e salvá-la, tiveram que ir até o Colorado. Preston foi apanhado e enterrado na areia do deserto só com a cabeça para fora, e quem o salvou foi Johnny Crisp. Mas não lhe conseguiu salvar os olhos. Preston perdeu um para os corvos e sua boca ainda tem as marcas da secura dos lábios por falta de água. Passou quatro dias enterrado. Voltaram para São Francisco. Numa tarde, um garoto com seus quinze anos de idade apareceu-lhe na frente. Vinha armado. Desafiou  o Johnny, que não aceitou o desafio e lhe disse: - Não se brinca com armas, garoto. Solta o cinto bem devagar para que não tenha que te machucar. Mas o garoto sacou rápido e atirou. O relógio marcava 05 horas, 40 minutos e 59 segundos no relógio de Preston que assistiu impotente de longe.

O copo de cuspir tabaco do senhor Preston Cake estava agora cheio de um líquido que parecia whisky. Sally encostou a cabeça na mesa e dormia. 
Um dia conto o resto.

® Rui Rodrigues

Os filmes de Hollywood contaram histórias de um velho Oeste violento, para encher bilheteria, mas não era. Quem acreditou enganou-se. A maioria dos Estados proibia armas de fogo. Mortes assim não passavam anualmente de cinco a seis em média por Estado, 30 a 40 foi o máximo. Mas aqui no Brasil ultimamente estão fazendo filmes sobre bandidos que querem transformar em heróis e preparam-se para escrever "biografias” com o mesmo intuito. Gastarão milhões de verbas públicas para escrever livros que só meia duzia irá comprar e ler. Só falta que obriguem á compra, novamente com verbas públicas, pelas universidades: O povo pagaria duas vezes pelo mesmo produto questionável.    




[1] O primeiro explorador europeu a chegar á Califórnia foi o português João Rodrigues Cabrilho em 1542. A serviço de Espanha.
[2] Dupla Águia. Valia 20 dólares, o que era muito dinheiro, embora envolvesse uma troca de cavalos. Os cavalos de meu avô até nem eram tão bons quanto os de Sally e Preston. Na época da corrida ao ouro, as passagens de navio custavam 90 dólares e davam a volta ao continente porque ainda não tinha sido construído o canal do Panamá. Era mais seguro do que ir por terra sem a estrada de ferro ainda construída até a Califórnia, evitando bandoleiros e índios renegados.
[3] Fundada em 1852.

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