Chegou sedenta
Pensei que fosse de água. Servi-lhe um copo cheio, de água fresca, quase gelada. Vinha da praia com o corpo suado, a pele úmida, um leve perfume. Estava a passeio numa caminhada solitária para conhecer o lugar. Perguntou-me se eu morava ali ou estava de passagem, curtindo o fim de semana. Disse-lhe a verdade. Morava ali, no meu paraíso onde me encontrava comigo mesmo, dissecava a vida tal como ela era, com o bisturi do conhecimento que exala de textos de livros, da Internet, e de um rico passado. Não conhecemos tudo nem uma mínima parte, mas mesmo sem a pretensão de conhecer o tudo, vamos conhecendo as partes que o compõem, tanto quanto pudermos. Parece ser o que podemos levar desta vida, porque aqui chegamos nus e daqui nus sairemos. Não fosse o conhecimento e as lembranças e pareceria ao chegarmos lá, que de nada teria valido o viver, porque seria como se nunca tivéssemos existido. Ofereci-lhe um vinho e o almoço que ainda iria preparar: Frango grelhado com batatas coradas, uma salada, pão feito em casa no forno. Ofereci-lhe o banheiro, xampu, toalha limpa, sabonete, desodorante feminino das sobras de outros dias. Olhou-me nos olhos para medir a confiança que me daria. Aceitou, subiu ao banheiro da suíte no andar superior, tomou seu banho tranqüila e desceu como se fosse outra mulher. Aceitaria o frango com as batatas coradas e dividiria o vinho. Não nos conhecíamos. Jamais nos havíamos conhecido.
Ficou do meu lado tomando seu copo de vinho em pequenos e saborosos goles, enquanto me via cozinhar. Mas o quê? Como se pode chamar de cozinhar ao ato de pegar duas coxas com sobre-coxa de frango, passar-lhes uma pitada de sal, por para assar numa assadeira que previamente forramos com rodelas de cenoura, descascar umas batatas e partir em rodelas que arrumamos ao lado das peças de frango, e à parte preparar uma salada de alface, tomate aos pedaços pequenos, cebola picada, azeite, suco de limão e azeitonas? É um cozinhar muito simples, saudável, saboroso, rápido e que não cansa nem aborrece. Sobra tempo para conversar. Não trocou de roupa, mas a tanga agora estava mais generosa, mostrava as lindas pernas, a pele lisa, e a parte superior do biquíni agora mostrava claramente o arfar do peito. Seus olhos semicerrados não perguntavam, davam-se. Olhou-me nos olhos e disse que o sol estava muito forte naquele dia. Mostrou o peito levemente rosado, e puxou o biquíni para mostrar a linha que separava a cor rosada da cor branca de sua pele. Não pude deixar de imaginar seus peitos sem o pano pudico em minhas mãos, acariciando-os. Ela aproximou-se. Beijamo-nos. Éramos dois necessitados do carinho um do outro. Não podia haver mal onde havia desejo de entrega, carência de carinho, de afagos, amar sem sermos obrigados a amar, apenas porque queremos amor, sem buscar definição em palavra que é apenas palavra, uma das muitas que nos confundem os significados da vida.
Nada queimou no forno, a salada foi conservada na geladeira até a hora de servir, e a garrafa de vinho ainda era quase virgem, quando nos sentamos na área, à sombra dos mamoeiros para matar uma parte da fome que nos afligia. Conversamos sobre a vida particular de cada um sem nos preocuparmos muito com a verdade. E o que era a verdade senão uma outra palavra das muitas do dicionário do linguajar que nos atrapalha e nos confunde o existir? Verdade era o que ainda não disséramos um para o outro, e que em breve seria dito, tudo a seu tempo, que a vereda da felicidade estava aberta, pronta para ser trilhada, sem censuras, sem obrigações, apenas pelo simples prazer de ser, estar, permanecer, ficar.
E depois do almoço, ali ficamos, permanecemos, estivemos, fomos um só, agarrados, abraçados, tocando-nos para sabermos como éramos, prazeres de existirmos, até que fomos um só, preenchendo o que nos faltava a cada um de nós e gozamos, deliramos, conhecemos o paraíso, o prazer de tornar a obscuridade do desconhecido em luz amiga e conhecida, quente, amorosa, um raio que sobe aos céus e agradece a Deus pelo momento. Uma lembrança para o fim da vida, para além da vida, para chegar no paraíso e dizer: Eu amei!
Amei um à outra e outra a mim, como a mim mesmo. Mais ainda, porque ela tem o que não tenho e tenho o que ela não tem. Mais do que gentilezas nos trocamos um ao outro, e descobrimos o que é felicidade. Sem culpas, sem falsos testemunhos, atestando a verdade que o amor é possível se nos esquecermos do que não querem que esqueçamos e nos lembremos do que nos querem fazer esquecer. A verdade do amor humano prevalecerá e resplandecerá em toda a sua plenitude quando os falsos profetas forem desmascarados e deixarem de proibir para nos governarem com proibições que nem Deus nos proíbe.
Estado civil não é um estado de espírito. É um espírito em determinado estado de existência.
Chegou e foi-se. Não como tinha chegado nem como tinha estado, permanecera, ficara. Foi-se com algo mais, com a vida com outro significado que me deixou de igual forma, com igual significado. Não há como encarcerar almas humanas, porque almas não conhecem grilhões, nem proibições. Almas são livres, habitam corpos que enquanto vivos são compartilhados, mas sempre unos, indivisíveis, a não ser para o amor, quando se compartilham e sentem o prazer de dizer: Eu vivi. Mesmo que nem sempre, mas apenas em curtos e preciosos momentos.
Nunca mais nos encontramos, não sei seu nome, seu telefone, seu endereço. Sei apenas que ela existe. Ela sabe que existo, e sabemos, ambos, que a vivermos juntos, jamais repetiríamos o momento. Tudo seria diferente, porque a água que passa no rio, num determinado momento, jamais volta a passar.
O que pode ser felicidade senão o momento em que se é feliz? Como podemos ter a pretensão de acharmos que podemos aprisionar a felicidade e fazer dela nossa escrava para toda a vida, até que a morte nos separe? São muitos os falsos profetas. Temos que ter cuidado para não jogarmos a vida fora, e os momentos de felicidade, os que justificam o viver, são raros, únicos.
Rui Rodrigues
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