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segunda-feira, 10 de junho de 2019

O Mistério das botas do comandante

Da série : Mistérios sem esperança de solução 

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O Comandante morreu e deixou entre outras coisas um belo par de botas brilhantes por fora, cheiro de usadas por dentro. Não constavam do testamento. O comandante fora-se de repente largando neste mundo a mulher, uma filha, um filho que ele pensava que era dele e não era, uma amante que todos conheciam mas não sabiam que era sua amante, e um filho que todos sabiam que era dessa mulher que todos conheciam, e era, mas que também era filho do comandante, e isso ninguém sabia embora algo sutil pairasse no ar sem saberem o que era. Se fosse confessado, todo mundo levantaria a cabeça, reviraria os olhos, daria um tapa na testa e diria com a certeza de um Arquimedes:

- Eureca, coa breca, bem que eu desconfiava!!!!

A viúva olhou para as botas e não viu serventia naquilo, muito menos para lembranças do cheiro que ainda pairava no interior, logo agora que estava livre dele e podia levar a vida na flauta sem ter que dar explicações. Finalmente ia soltar a bacorinha, deixá-la engolir linguiça à vontade. A filha mal olhou para as botas brilhantes por fora e usadas por dentro. Eram muito grandes, fora de moda e sem lugar onde guardá-las. Logo se descobriu que todos tinham motivos para não querer o par de botas que, diga-se de passagem eram brilhantes por fora e usadas por dentro, porque para cúmulo do desinteresse, o comandante não morrera em batalha nem tinha sido torturado em ditaduras.
Resolveram doar o par de botas a um mendigo que costumava se ajeitar sob a marquise de uma loja dois prédios abaixo para a direita. Isto foi numa quinta-feira faz dois anos. Na sexta-feira seguinte sábado e domingo viram o mendigo sempre de porre, mas descalço como sempre, sem as botas. Ainda lhe perguntaram pelas botas, mas ele sorria e respondia com um sorriso simpático que não sabia de botas algumas, mas que se tivessem um par do tamanho dos pés dele, que pudessem doar, que aceitaria de bom grado. A partir da segunda-feira seguinte nunca mais ninguém se lembrou ou falou das botas do comandante durante dois anos. Voltaram a lembrar-se quando viram anúncios de moda com botas no cardápio. Então levantaram a hipótese de uma certa fortuna- que o comandante deveria ter por obrigação, visto que não gastava tudo o que ganhava. Especulou-se que deveria ser uma fortuna bem gorda, que deveria estar num cofre em Banco na Suíça, talvez diamantes, e que a chave do cofre junto com a senha deveria estar no tacão da bota...

Mas onde andariam as tais botas?

O mendigo desaparecera. Ou morrera ou andava pela cidade em outro bairro, irreconhecível, quem sabe rico... As cidades guardam histórias que só se contam ao vento em caminhadas matinais pelas ruas e praças da cidade, principalmente em dias de nevoeiro. Nossa visão nos parece sempre cristalina e que enxergamos tudo muito nítido, mas a verdade se esconde na bruma.
Aquela bruma que nos tolda o pensamento, não a visão.

Rui Rodrigues 

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