Este mundo nu e cru habitado por nus e crus.
- A artista
Era linda, tinha apresentação, passava horas em frente ao espelho fazendo caretas e arremedos, rindo e chorando quando ainda era adolescente. Quando finalmente repararam nela e a convidaram para fazer um teste, foi um sucesso: Conseguia fazer o que lhe mandavam fazer, e conseguia decorar pelo menos duas linhas de texto. Passou de “menina que ia a festas” a artista muito bem paga em poucos meses. O povo exultava com sua presença frente às câmaras da TV. Não sabia cozinhar um ovo, suas notas medíocres no colégio não lhe garantiam futuro técnico. Na emissora de TV era muito popular em novelas e fez bastantes filmes. Chegou até a contratar quem lhe escrevesse um livro de memórias. Em sua vida de artista, viajou muito, comprou um apartamento, deu almoços e jantares, sua vida foi de “glamour”, contas bancárias no vermelho que “amanhã será outro dia” principalmente se fizer propaganda para político. E foi. Depois que seu glamour acabou, e seus jeitos e trejeitos já não interessavam tanto às platéias ávidas de novidades, caiu no esquecimento, deu apenas mais uma ou duas festas para ver se era relembrada, e como não foi, vendeu o apartamento, ou o que restava da hipoteca, suas contas de banco passaram a ser coisa do passado e passou a ser sustentada pelo Retiro dos Artistas cada vez de verbas mais reduzidas por causa da administração. Sua aposentadoria é aplicada no Retiro para se manter. Ainda pode respirar, maquiar-se em frente ao espelho, falar da velha vida aos outros artistas do retiro que não lhe fazem inveja e aos quais não faz inveja nenhuma, mas sustenta-se pela caridade que não é dela. Já se habituou ao fato que rege as amizades: Os objetivos comuns e o mérito de cada um. Sem estes ingredientes os amigos se resumem a dois beijinhos de cumprimentos, um sorriso de artista, e meia dúzia de frases agradáveis, decoradas, comuns e correntes em todos os meios mesmo os que não são de artistas consagrados. Ela acha tudo isso injusto porque alega ter dedicado toda a sua vida à “artistice”.
- O prêmio Nobel
Há umas décadas atrás andava muito preocupado com as ciências. Fez várias descobertas, que outros aproveitaram, e quando percebeu, suas idéias tinham sido publicadas por outros que ganharam os méritos e dinheiro com patentes. Só uma teoria foi o bastante para ganhar um Prêmio Nobel, com toda a projeção e reconhecimento internacional, acompanhado de um belo cheque de quase um milhão e meio de dólares. Ainda hoje décadas passadas, com um milhão e meio de dólares se faz muita coisa e até uma garantia de aposentadoria tranqüila. A esse dinheiro ele somou pagamentos por palestras, salários da Universidade onde era professor. Provavelmente nunca fez uma planilha de projeção de economias, para saber o que fazer com seu dinheiro. Só se deu conta quando, depois de declarar que negros são menos inteligentes que os brancos, perdeu o cargo de professor, olhou sua conta bancária e viu que estava zerada, já morando num quarto alugado. Longas noites passadas em laboratório viram afastar-se sua esposa, depois os filhos, um amigo se juntou à esposa, outros amigos se evaporaram como vapor em tubos de ensaio porque nunca mais teve notícias deles. Quando o oficial de justiça lhe bateu á porta do quarto mostrando-lhe uma intimação de despejo, bateu-lhe um estalo de neurônios ainda ativos. Procurou avidamente em sua carteira e ainda encontrou uma nota de cinqüenta dólares guardada para as ultimas e derradeiras emergências. Deixou os poucos pertences na portaria do prédio, apanhou o metrô e dirigiu-se à redação de conhecido jornal. Lá explicou sua situação, afirmando, com toda a razão, que havia dedicado toda a sua vida à pesquisa científica a ponto de esquecer a família, e as poucas aulas de economia. Hoje há uma campanha na Internet tentando colher alguns dólares daqueles que ele desperdiçou durante toda a sua vida, mas a situação de todos é parecida: Quando jovens, adolescentes e maduros não se pensa na vida. Depois convocamos a sociedade e os amigos e passamos a ser socialistas. Alguns passam a ser mais cedo, mas os motivos são outros. Alguns são racistas.
- A Comerciante
Quando era jovem seu pai, comerciante, lhe dava de tudo, até coisas que não dava ao filho. Ela era filha de sua mulher atual, ele de sua primeira, e havia até um terceiro á margem. É aí que se vê a diferença nos tratos materiais, porque no trato verbal sua linguagem os tornava irmãos igualitários, sem diferença alguma.
Crescendo assim de vida tão fácil, casou com outro comerciante que logo ficou rico, com a ajuda do velho que ainda era vivo. Quando se separaram, ela aceitou uma lojinha e um apartamento como pagamento pelo desquite, que logo torrou. Comeu o marido da prima em troca de um empréstimo de alguns milhares de dólares que ela nunca mais voltou a ver, e quando lhe disseram a respeito de seu apartamento de 300.000 reais (naquela oportunidade): - Bem... Se a senhora está com pressa, só lhe posso dar agora 40.000 à vista. Ela vendeu e foi passar férias no Nordeste para esquecer as amarguras da vida. Já pensou em se juntar a um grupo, o MST, que luta pela posse de terras encrencadas e não encrencadas, dando tiro a torto e a direito, passando tratores em áreas plantadas. Ela jura, desde os tempos de seu deficiente aproveitamento escolar, que não tem culpa se o mundo não lhe corre como aos “outros”, mas está ciente que se os irmãos não conseguirem a tempo fazer agilizar a justiça, ainda poderá ficar vivendo no apartamento que o pai deixou para ela e seus dois irmãos. Vive da pensão de um filho que o marido lhe deixou. Os outros vivem com o pai como sempre viveram. Seus olhos grandes já não atraem pretendentes como nos tempos da difícil vida de ter de trabalhar para ganhar o sustento, e sendo nisto incapaz, de aproveitar a vida com o dinheiro disponível. À Europa só foi quando o pai a levou por um par de vezes e mesmo assim, só conheceu mesmo, a terra natal do pai. O resto, se lhe perguntarem, não saberá dizer de nada: Via a paisagem passar...
- O trabalhador da terra
Não há muito que dizer dele. Faz parte de uma massa cinza que come com as mãos ou com uma colher a marmita que lhe dão todos os dias no trabalho. Nunca freqüentou a escola, e é tão crente esperançoso quanto trabalhador. Não tem bagagem para argumentar. Quer dizer: Não tinha, porque agora tem. Depois de passar por empregos vexatórios e esclavagistas nos quais lhe cobravam pela alimentação, pela roupa de trabalho e pelo colchão estirado em úmido e fétido barracão, de forma tal que sempre devia mais do que recebia, passou também por outros que não lhe descontavam tanto, mas o que sobrava era sempre uma mixaria que dava vontade de trocar por meia dúzia de garrafas de cachaça barata para esquecer apenas duas coisas: Porque o mundo era assim, e o que fazer para ser como aqueles que têm carro, boas roupas e comem sempre em restaurantes no centro das cidades. Um dia soube que estavam chamando gente para cortar cana perto da cidade de Campos. Meteram-no dentro de um caminhão e lá foi ele juntar-se a mais algumas centenas. Quando o salário atrasou pela segunda semana e sentiu que lhe pagavam menos do que a área que cortara, começou a murmurar. Outros murmúrios se lhe juntaram. Numa noite, antes de dormir, soube de um movimento: O MST - Movimento dos Sem Terra, uma forma de fazer reforma agrária, ocupando terras e dá-las a quem está interessado em cultivá-las. Na semana seguinte, com o pagamento dos atrasados que já lhe chegara, partiu de abalada para o Rio Grande do Sul onde havia uma grande concentração reivindicando terras. Mas não sem primeiro passar em casa para avisar a mulher. Chegou tarde da noite e estranhou a luz acesa passando como um filete por debaixo da porta da entrada do casebre. Movido pela curiosidade para fazer uma surpresa á mulher, enfiou a chave na porta suavemente, e espreitou. Sua mulher, a sua mulher, estava de quatro, coisa que ela nunca fizera para ele, debaixo da carcaça gorda de um sujeito que já vira várias vezes de passagem pelo bairro. Pensou em sacar a peixeira e matar os dois ali mesmo, mas não o fez. Em vez disso, fechou a porta bem devagar sem a trancar e saiu para a rodoviária a pé. Depois de muitas ocupações, está rico. Sua parte nos assentamentos “vendeu” sem papel, para os companheiros da Reforma Agrária. Só guardou uma posse para não dizerem que era mercenário traidor ou algo do gênero, o dinheiro guardou em conta bancária. Quem fiscaliza o pessoal do movimento não se preocupa com contas bancárias. Agora tinha uma liderança e já comandava sozinho algumas tentativas de novos assentamentos. Um dia a esposa o viu num desses movimentos á beira da estrada, reconheceu-o e dirigiu-se a ele. Viu-o mais gordo, banho tomado, roupas simples, mas sem remendos, perfumado. Deduziu que estava rico e que tinha tido direito a alguns nacos de terra. E disparou-lhe à queima roupa: Na hora de seres pobre e precisares de mim, me exploraste. Agora que estás rico, quero o divórcio, pensão e metade das terras. Ele jura que foi um acidente na estrada, quando o carro que vinha em alta velocidade a atropelou a um par de passos da linha amarela da faixa de acostamento.
- O político de ocasião.
Nunca tinha pensado em ser político, mas num comício durante as eleições de 1988, quando o candidato no palanque disse alto e bom som, que o partido político precisava de gente dedicada, com opinião, alguns amigos interromperam-lhe a fala e gritaram o nome dele. Foram poucos, talvez uma meia dúzia, mais por gozação que por outro motivo válido qualquer, mas o fato é que o candidato o chamou para o palanque e não o largou mais até o final do evento. Foi assim que entrou para o partido e para a política. Começou a receber um “salário” bem farto, e largou a empresa para a qual trabalhava como chefe do departamento de pessoal. Elegeu-se vereador, depois deputado, finalmente, depois de tantos anos, perdeu as eleições e não se elegeu mais, mas aquele candidato que o chamara para o palanque do comício nunca mais o largara. Pareciam sócios no partido. Agora era presidente do partido e indicou-o em 1996 para uma das diretorias de uma empresa mista de capital do governo e de capital privado, ligada a uma ainda maior também de capital misto. Não tinha que fazer nada na empresa. Apenas assinar o que lhe pusessem na frente, desde e exclusivamente que lhe fosse levada pessoalmente por seu assessor. Quem mandava nele era o assessor, porque se um dia fosse demitido, o assessor que sabia de tudo ficaria para assessorar o novo indicado do partido. Embora não tivesse instrução técnica suficiente nem soubesse lidar com nenhuma das disciplinas inerentes a uma grande empresa de capital misto, mesmo assim, foi-lhe fácil entender que se aprovavam documentos envolvendo grandes, enormes somas de dinheiro. Pelo pouco que entendia das letras, das vírgulas, pontos, parágrafos, tiles, circunflexos e aspas, conseguia perceber que faltavam alguns documentos, que outros eram taxativamente prescindidos, e temeu por seu emprego, por sua carreira. Um dia foi falar com o tal político que o indicara. Foi acalmado com uma pequena porcentagem sobre os valores aprovados em tais documentos, com a explicação necessária de que, para ter merecido aumento, não poderia ser da forma convencional porque a política de cargos e salários não o permitia na empresa. Tinha que ser por porcentagens.
Em casa, depois de ter conhecido a Suíça e outros países da Europa, Estados Unidos e “Maiami”, com apartamentos, carros de luxo e farta mesa, seus filhos estudando nos melhores colégios, costumava ter ataques de moralidade. Como a vida lhe correra de tal modo que agora tinha tudo aquilo, só assinando documentos e falando em palestras e reuniões da Empresa sobre o que todos sabiam sem contar novidades, uma idéia brilhante sequer, senão as que lhe vinham por telefone de seu benfeitor político de carreira?
Foi num acesso destes de moralidade que resolveu, depois de apanhado pela polícia federal, em participar de “delação premiada”. O dinheiro que colocara numa conta de um grande amigo, residente no exterior, estava garantida e era bem gorda. Ele jura que fez tudo isso porque quando entrou para a política já era assim, e que por sua falta de conhecimentos técnicos pensou que estava trabalhando para o bem do partido e em decorrência para o bem da nação.
A propaganda é a alma do negócio e o melhor negócio é o da oportunidade, já que cavalo encilhado só passa uma vez, e quem não tem padrinho morre pagão. Tal é a natureza na pirâmide que não sendo egípcia por cá também se plantam dentre outras obras faraônicas perpetradas por políticos de ocasião, apoiadas por artistas de ocasião, construídas por trabalhadores de ocasião, financiadas por comerciantes de ocasião, com instrumentos descobertos e inventados por prêmios Nobel. Quem não é de ocasião também jura que está nu e cru nesta etapa humana de conseguir o que pode... E quem não pode se sacode, não importa que bandeira levante nem quem tenha inventado a bandeira.
E qualquer um desses poderia ser "nosso" presidente da República...E eu juro que tudo isto é ficção!
®Rui Rodrigues
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