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sábado, 1 de novembro de 2014

Viajando com os vinhos - Vivam os mortos!




Quando as primeiras naus navegaram para os mares do Sul, descobriram o Brasil, outras depois, terras cisplatinas, e em pouco tempo tinham dobrado o Cabo Horn o ponto mais extremo do Chile. Assim como os vikings levaram videiras para plantar em sua colônia na América, a Vinland (onde é hoje a Terra Nova, no Canadá) também as naus, cerca de mil e quinhentos anos depois, começaram a carregar videiras nas viagens posteriores, agora para a América do Norte e também do Sul. Os colonos não podiam prescindir do bom vinho, nem os marinheiros. Todas as naus carregavam tonéis de bom vinho. Sem ele as tripulações se revoltavam.



No entanto, embora a carga de vinho fosse limitada por ter que ser proporcional às das demais necessidades, nem sempre o vinho acabava durante as longas viagens de ida e volta. Em Portugal chamavam a esse vinho “vinho de Travessia”. Talvez pela exposição do vinho a diferentes temperaturas, ele ficava com paladar diferente, mais encorpado, “diferente”, e por incrível que pareça, passou a ser disputadíssimo pelos melhores apreciadores do bom vinho.



Por volta de 1850 navios provindos da América do Norte chegam á Europa com uma novidade: A Filoxera, um afídio (inseto sugador alado parecido com mosca) que a partir de 1863 devastou uma imensa parte das videiras européias, e quase que completamente as videiras francesas. Franceses guardam com todo o cuidado os seus monumentos, seus aspectos culturais, e no caso da vinha, sua cultura vinícola. Por isso, sempre atentos, foi-lhes fácil concluir que o melhor lugar para preservar as suas mudas matrizes seria levá-las para o Chile, o único país fora do Mediterrâneo, que possui zonas de clima mediterrânico, onde florescem vinhas, nogueiras, oliveiras, frutas adaptadas ou autóctones do mediterrâneo.



E os anos passaram entre viagens em embarcações á vela, a vapor, até que alguém se lembrou de pesquisar sobre a grande praga que assolara os vinhedos da França em 1850 e o desenrolar das conseqüências. Na França faltava uma espécie de uva: Carmenére. Onde poderia estar ainda preservada alguma matriz? Evidentemente que no Chile. Foi encontrada, e hoje temos vinhos Carmenére (que lembram o Cabernet Sauvignon) nas prateleiras dos supermercados. Em Portugal, que me lembre, ninguém se lembrou dos vinhos das travessias oceânicas... Mas no Chile alguém deu à sua produção de vinhos Carmenére, e de outras castas o nome de Travessia. Este em especial é produzido no Valle Central. E isto nos leva a refletir.



Nesta vida temos muito a agradecer, geneticamente, a nossos ancestrais. Por vezes pensamos que somos um “ser único”, mas nossos genes nos desmentem descaradamente. Olhamo-nos, vemos que temos "uma cor", e nem notamos que temos sangue índio, negro, viking, medo, persa, judeu, vândalo, suevo, oriental, de cromagnon... Todos nos são desconhecidos porque não nos deixaram fotografias, só genes e algumas tradições, muitas mal ou bem perdidas. Assim também estamos vivos porque os soldados, tantos, desconhecidos, nos garantiram com a dádiva de suas vidas a garantia das nossas. Não sabemos também quem foi o primeiro a provar o vinho das travessias e a espalhar a notícia de que era um “espetáculo” e não poderíamos esquecer quem se dedicou a pesquisar onde estava guardada uma das últimas mudas do Carmenére. Por isso, quando tomar um vinho Travessia, Carmenére, feche os olhos, e enquanto se delicia com o seu sabor, ao outro sabor, o das ondas, agradeça mentalmente a toda essa multidão de humanos que palmilharam e navegaram a Terra não só para descobrir, explorar, mas também para cultivar, dividir descobertas, criar senão uma nova espécie de Sapiens, um Sapiens mais humano ainda.

Quanto a mim, agradeço também ao Chile, uma terra encantada, cheia de história e cultura, de bons vinhos que não só não envergonham os vinhos franceses como até deixam muitos deles envergonhados.

Içar as velas para mais uma Travessia de garrafa, viajando a bordo com portugueses, franceses, vikings, brasileiros, chilenos... Vivam os mortos !

Caravelas do Peró, 01-11-2014


® Rui Rodrigues

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