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sexta-feira, 20 de junho de 2014

Muito além da escuridão há uma luz...

Muito além da escuridão há uma luz...

No “Bar do Chopp Grátis” todos os dias são quase normais. Bebe-se muita cerveja, a vozearia chega a ser monótona entre tilintar de copos, e muito raramente alguém puxa um assunto interessante que faça com que as mesas e cadeiras se juntem em torno de um “palestrante”, formando-se um circulo de raio tão variável quanto o teor alcoólico dos miolos interessados em escutar. Mas acontece. Ontem á noite aconteceu com o Carlos Hildebrando, um velho freguês quando Beatriz, outra velha cliente puxou o assunto de “vidas passadas”. Ambos são velhos fregueses do Bar, mas não têm mais de 50, no máximo 55 anos.

Carlos Hildebrando da Fonseca Y Aguilar ficou muito impressionado com essas histórias de reencarnação contadas e propaladas em livros e pela NET e agora levantadas por Beatriz, a dona das pernas mais belas e bem torneadas de toda a clientela feminina. Uma Marlene Dietrich até no olhar fatal de galinha morta. Contou então a sua história. Alguns meses atrás, movido pela curiosidade sobre o assunto tinha tomou uma decisão depois de muito matutar sobre as conseqüências: Estaria disposto a enfrentar duras constatações de vidas menos dignas, indignas, muito indignas caso tivesse sido esse o seu caso? E em quem acreditar? Sim, porque não ouviria apenas a uma fonte, mas a várias. A entrar nessa gruta de surpresas, iria até o fim. Queria saber tudo nos mínimos detalhes. Faria sessões de “regressão” por hipnose, procuraria os melhores conhecedores do assunto via tarô, ou consulta despersonalizada via NET. Estava movido pela curiosidade que o atormentava dia e noite. Hoje no Bar Carlos nos contou a sua experiência. No princípio da conversa pensou-se que seria algo jocoso, irônico, com bastante humor, porque se discutiu os métodos para descobrir as vidas passadas, que mais pareciam um engodo, uma armadilha para os “crentes em qualquer coisa desde que seja estranha”, mas a conversa foi descambando para o sério.

Carlos é do tipo de ouvir sempre, pelo menos, duas opiniões para cada tópico de um assunto complexo. Primeiro foi no mais fácil e entrou num site da NET que só lhe pediu em números a data de seu nascimento. Não pôde ter fé nesse site, porque muita gente nasceu no mesmo dia que ele e estariam todos reduzidos a um único passado idêntico. Isso seria impossível. Segundo esse site teria nascido no Norte da Índia, teria sido dentista no ano 700, homem. Então, como parte do “negócio” para crentes, o site encaminhava para “respostas” do Tarô, e até previa data de morte sem se preocupar sobre a saúde, hábitos, etc. Não pôde acreditar em algo tão inconsistente. Consultou vários “experts” mo assunto, desde estudiosos de Tarô a pais de santo, astrólogos, e foi até em vários centros espíritas, mas não ficou satisfeito. Um especialista chegou a dizer que ele tinha sido uma meretriz da alta sociedade, amante de um gladiador em Pompéia e que tinha morrido sufocada durante a erupção do Vesúvio no ano 79 DC quando fazia amor com ele, um gladiador. O especialista chegou a sugerir que poderiam ir a Pompéia e pedir aos curadores do museu de estátuas de cinza para fazer o teste de DNA, o que confirmaria que ele tinha sido a meretriz. Carlos poderia ser bobo de vez em quando, mas não a todo o instante. Foi então que se consultou com um psicólogo especializado e se submeteu a umas sessões de hipnose regressiva. Como é muito precavido, levou a mulher, não fosse o psicólogo um tarado que se aproveitasse dele enquanto estivesse hipnotizado. Realmente, dadas as circunstâncias atuais do mundo em que se vive, toda a precaução é necessária até para ir a templos, sejam eles quais forem e onde forem. Vai que aparece um fanático e explode tudo... No consultório esperava que o fizessem flutuar no espaço por cima de um sofá de veludo, mas não encontrou nenhum sofá de veludo. Foi hipnotizado deitado numa maca de consultório médico daquelas que tem uma escada me metal móvel para crianças ou para quem tem pernas curtas. Ouviu o mantra do psicólogo, concentrou-se com a maior das boas vontades, entrou em transe e se lembrava muito pouca coisa, mas tudo que falou ficou gravado num lindo e brilhante CD de computador. Mas antes de ouvi-lo, o psicólogo foi até o computador e pesquisou dois nomes que Carlos havia falado em seu transe: Wilhelm Gustloff [1]. Era um navio de passageiros. Um olhar de admiração do psicólogo fez tremer Carlos e a esposa. Era um olhar preocupante, com ares de catástrofe. Carlos estava impressionado, ansioso para fazer perguntas. Seu corpo estava frio, o suor frio de suas mãos o incomodava. Mas mais ainda o incomodava a expressão corporal de sua esposa, tolhida, encolhida, os olhos dela buscando os dele tentando ler-se no íntimo, um ao outro.

A esposa de Carlos estava imóvel, os músculos retesados, em estado latente de tensão. Carlos pensou acertadamente que isso se devia ao que tinha falado durante a sessão. Passou as mãos no rosto, perto dos olhos sentindo que algo o incomodava e viu que estava molhado. Ele chorara durante a sessão, mas não se lembrava de ter chorado. Começaram então a recordar o que ele falara e o que vira e aos poucos Carlos foi unindo fatos e sensações. Ele disse:

- Meu Deus! Que coisa terrível, uma catástrofe. Foi a maior catástrofe naval de toda a história humana. Eu morri!


Era o dia 30 de janeiro de 1945, um dia muito frio como costumam ser os dias frios na zona do Báltico. O dia já estava no fim e o Wilhelm Gustloff que tinha saído do porto de Dantzig na atual Polônia, estava incrivelmente repleto de refugiados alemães da Prússia Ocidental evacuados numa operação chamada Hannibal. Fugiam desesperadamente do exército russo e dos próprios poloneses agora libertos.  O navio tinha sido projetado para cruzeiros da classe operária de Hitler e fizera muitas viagens para os fiordes noruegueses, Lisboa e Ilha da Madeira. Em 1939 tinha feito o repatriamento da Legião Condor, alemã, durante a Guerra Civil Espanhola.  Sua capacidade era de cerca de 1.800 passageiros. Naquele dia, porém, transportava incríveis 10.500 pessoas, sendo cerca de 1.000 a tripulação e 4.000 eram crianças. Havia muitos soldados alemães feridos em combate. Entre eles, Carlos se lembrava do nome de uma criança: Horst Woit [2], uns seis anos de idade. Estava acompanhado de sua mãe. A ultima vez que o viu ele estava tirando um canivete suíço de suas calças e o dava a um marine alemão para cortar as cordas do barco salva-vidas, que lhes permitiria baixar o bote para a salvação. O navio tinha sido torpedeado três vezes por um submarino russo [3] às 21:10. Embora quatro torpedos tenham sido lançados, um falhou. As explosões provocaram pânico instantâneo. Crianças choravam, pessoas corriam para salvar-se. Muitas caíram ao mar, muitas morreram com as explosões. O navio adernou a 15 graus instantaneamente e às 22:30 já não existia mais. O Báltico era agora todo silêncio. Carlos ajudava no convés no que podia. Não estava preocupado em salvar sua vida. Respirava, não estava ferido, era jovem ainda. Estava com 28 anos. Não era herói. Ajudava idosos, mulheres e crianças a salvar-se, amparando-as, encaminhando-as para os botes.  Entre eles, Horst Woit e a mãe. O que mais o impressionava eram as expressões dos olhares, os olhos excessivamente abertos, muitos gritos, gente se empurrando, crianças pisadas, a conformação expressa em muitos olhares da certeza que morreriam. Apesar de tanta certeza e conformação, 964 se salvaram. Entre 8.500 e 9.600 morreram por ferimentos, por pisoteamento, por quedas ao mar, pelo frio do mar Báltico, boa parte afogada antes de sentirem os efeitos da hipotermia.


Carlos viu os alguns botes se afastarem aparentemente a salvo, quando a popa do navio ainda estava a uns bons 10 metros acima do nível do mar. A inclinação não permitia ninguém no convés a menos que estivesse agarrado a alguma coisa. Carlos estava agarrado a uma corda cortada dos botes salva-vidas. Sabia que ao afundar o navio o sugaria para o fundo. Quanto mais tarde saltasse ao mar, menos tempo ficaria na água fria, a cerca de dois graus centígrados e uma sensação térmica de menos dez graus, prolongando assim sua entrada no estado de hipotermia, mas reconhecia que já era muito tarde para saltar. Se seus pulmões agüentassem poderia subir à superfície, embora isso fosse praticamente impossível. Não tinha muitas esperanças. Aceitava a fatalidade. Qualquer navio que tivesse sido avisado pelos S.O.S lançados não apareceria antes de pelo menos uma hora.

Agora Carlos se lembrava de sua regressão completamente. Primeiro sentiu o frio. Depois quis respirar, mas respirou água. Seus pulmões estavam inertes, arfava para respirar cada vez com menos força. Seus olhos se apagaram quando todos os seus sentidos já não sentiam nada. Nem dor, nem pena. Absolutamente nada. Por mais uns cinco minutos ainda lhe restou a visão e um leve sentimento de que em breves segundos mais só restaria a escuridão. Então, como num despertar virgem, sem qualquer lembrança, começou a escutar o som das ondas do mar, suaves ondas como as de lagoas batidas por leve brisa e também sem a mínima noção de tempo, sentiu que via embora tudo estivesse escuro. Ouviu sons de canções ao longe, sons de rádio, sons de passos entremeados de silêncios absolutos, nada como dantes. Até que de repente viu a luz, e escutou perfeitamente: É um menino! E então chorou tudo o que não havia chorado.

® Rui Rodrigues




[1] Navio alemão. A história dele embora incompleta é verdadeira. Foi a maior catástrofe naval até os dias de hoje.
[2] Horst Woit é um dos sobreviventes do afundamento. Tinha 76 anos em 2012. Não sei se ainda vive.
[3] O S-13 era comandado pelo capitão Alexander Marinesko

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