PROCURAM-SE DESAPARECIDOS
Despertei a altas horas da manhã. O dia tinha-se acabado, a noite ia a meio, novo dia ainda estava longe. Senti falta de algumas pessoas muito importantes de um rol que pululava em minha mente. O contato com elas desaparecera e nunca mais as vi. Outras existem, mas são já tão poucas, que se acreditasse nas visões apocalípticas de passados videntes, diria ter chegado o final dos tempos, novas Sodomas e Gomorras queimando pela terra como vulcões em prédios alimentados por gás combustível, plásticos em labaredas mal cheirosas, fagulhas de materiais incandescentes elevando-se nos ares, gritos de condenados urrando numa prisão implacável de fornos crematórios.
Lá estava o senhor Agostinho e outros como ele. Tinham umas caras bondosas, tranqüilas, falavam com todos sem lhes importar a condição social, baixavam-se à altura dos olhos das crianças para falar com elas, paravam alguém na rua que lhes parecesse muito preocupado ou chorando para lhe perguntar se precisava de ajuda. Invariavelmente faziam doações a comunidades necessitadas e seus testamentos sempre contemplavam algumas dessas instituições. Quando naquele momento, em minha busca por outros tipos, procurei por alguns outros, notei-lhes também a falta. Aquelas instituições em que o sr, Agostinho acreditava como benfeitoras de desamparados, também já não existiam. A maioria retirava apenas uma pequena parte das doações para auxílio e o resto para que os donos, os sócios, levassem uma boa vida. Muitos lares para idosos foram fechados por maus tratos a seus beneficiados, e em muitos outros não eram lares, mas infernos onde os idosos passavam frio, fome, sede, e sofriam de carências, de falta de higiene, de assistência médica. O senhor Agostinho dava doces, rebuçados, chocolates à criançada. Hoje ensinamos as crianças a não aceitarem nada de ninguém porque podem sofrer por isso. Quem as dá pode fazê-lo para atraí-las, raptá-las, tirar-lhes os órgãos para venda, abusar de sua inocência. Nos aniversários que o sr, Agostinho comemorava com os amigos, pagava tudo em mesa farta. Agora, quando comemoramos os aniversários dos amigos todos pagam a sua parte. Parece ser que antes havia amigos, mas agora já não, porque não importa quanto têm, todos exigem entre sorrisos que cada um pague a sua parte. Mais do que justo, é, reconheço, mas é também um sinal de ausência do dividir, compartilhar e uma ironia, porque parece que tudo se divide. Já não encontro o Senhor Agostinho pelas ruas da vida. Procuro e não encontro. Os que ainda existem não se mostram nem agem assim porque têm medo de serem confundidos com os outros, os que caminham sobre esteiras do mal que deslizam sem lhes ouvirmos os passos. Desapareceram também os termos “senhor” e “senhora”, agora substituídos por “ele” ou “ela”, para que não se qualifique por engano o que não passa de ser ele ou ela e não são definitivamente um senhor ou uma senhora. Também já não há os que ajudem os senhores Agostinhos em seus últimos momentos, porque os filhos que deveriam cuidar deles se ausentaram, e depois dos gastos com o funeral, apareceram para agradecer, levaram as ultimas roupas do defunto e nem perguntaram quanto custaram as despesas com médicos e o funeral.
Não encontrei aquelas pessoas que recebem troco a mais quando compram e o devolvem ao caixa que se distraiu por qualquer motivo. Nem nas ruas quem encontre uma carteira perdida e a devolva intacta no primeiro posto policial para que se encontre o dono. Talvez porque a vida nos mostre dia a dia a sua dureza e tenhamos perdido a confiança nas polícias que nos batem em manifestações, participam de roubos ainda na ativa ou quando dela saem. E nas escolas, bem cedo se aprende que os que parecem nossos amigos podem ser na verdade pequenos vendedores de drogas, ou dos que abusam dos mais fracos fazendo-os passar por vexames dia após dia, em infinito martírio. Alguns vão armados para as escolas e matam. Outros voltam à escola anos depois para matar alunos e professores, frustrados pela decepção de sua imaginação trabalhada até a esterilidade da confiança em si mesmo, confrontada com a realidade dos que seguem o seu caminho com sucesso. Para aqueles, o mundo está completamente errado e eles são os pobres coitados, perseguidos, que deveriam estar na posição dos mais beneficiados por terem sofrido as maiores injustiças, não porque tenham sido mais justos.
Não encontrei os casados há mais de cinqüenta anos, abraçados, rindo entre si e das coisas que fazem, cercados pelos filhos que os cuidam, os netos que os distraem e dos quais cuidam também de vez em quando. Tinham antes uma idade entre os 50 e sessenta anos e eram avôs, por vezes bisavôs. Agora têm noventa, cem, cento e dez anos, um ou dois filhos, quatro ou cinco netos, ainda caminham e fazem caminhadas, são independentes, os filhos vivem longe, os netos correm pela vida já buscando a sua independência, mas vivem separados, cada um em sua casa, independentes, pessoas que vêem na própria vida o prazer de cuidar de si mesmas, porque seus descendentes lhe exigiam não só o sacrifício da vida, mas como também a entrega da alma, lhe roubavam o tempo de viver.
Em assaltos nas ruas, não há ajuda de uns aos outros, porque o bandido que aparece tem outros á ilharga, todos estão armados, e não há policiais por perto.
Aqueles guardas noturnos que caminhavam com um molho de chaves para abrir as portas a quem tivesse perdido as chaves, acabaram. Já não existem. Muitos deles cooperavam com os amantes do alheio e estes por sua vez descobriram nessa fortaleza de caráter humanitário, uma fraqueza que lhes abria as portas para o vandalismo. E o Estado que paga para que se tenha serviços públicos decentes e grátis, porque todos pagam impostos, estão fechando suas portas aos cidadãos e abrindo-as à especulação da terceirização e da globalização que cobram até em urinóis públicos por entrada, podendo antever-se o dia em que cobrarão por litro urinado.
Procuram-se tipos humanos, instituições cidadãs perdidos todos num mundo que evolui não porque a cidadania fale mais alto e promova as mudanças, mas porque as instituições promulgam atos e agem em total desacordo com os interesses de uma humanidade cativa que sofre e arde como combustível da ambição de uns poucos.
As labaredas chegam aos céus. Não há instituição merecedora que possamos defender, não há amigos que compartilhem, parece não haver cem justos nestas cidades. Quem sabe, nem cinqüenta, ou mesmo vinte. Procuram-se os desaparecidos, quem erre e assuma os seus erros.
Aqueles filmes de Hollywood que nos mostravam um mundo de fé no futuro, a vida amena possível para todos, esgotaram-se e cinemas fecham portas.
De minha parte peço perdão. Somos todos culpados. Somos todos construtores de um novo mundo.
Rui Rodrigues